“Homer & Langley” | E. L. Doctorow
Dois seres inadaptados em luta com o mundo exterior
Há livros assim, que nos conseguem cativar desde as primeiras linhas e se tornam companheiros de viagem até assentarmos os pés no nosso destino final. “Homer & Langley”, livro de E. L. Doctorow com edição pela Porto Editora, é um desses casos de amor à primeira vista. Calcem uns sapatos confortáveis, sirvam-se de um copo alto e bebam isto de uma assentada: «Eu sou o Homer, o irmão cego. Não perdi a vista de repente, foi como nos filmes, um lento fade-out.»
A 21 de Março de 1947, a polícia nova-iorquina recebeu uma chamada de alguém que confidenciava que da residência dos Collyer emanava um cheiro a cadáver. Debaixo de toneladas de lixo, acumulado ao longo de décadas numa mansão com sinais de grande uso e um ar de abandono, estavam os corpos de Homer e Langley Collyer, dois irmãos que acabaram por se tornar uma lenda, protagonistas de histórias que encerram a tragédia e a comédia em doses iguais. E. L. Doctorow parte desde acontecimento para criar um retrato deveras singular da condição humana, que percorre grande parte da história americana e nos apresenta a duas personagens simplesmente incríveis.
Homer, o irmão que se tornou cego num processo demorado, é o narrador da história, que confere à narrativa um improvável tom de comicidade. Acompanhamos toda a sua vivência, como o lento processo que o conduziu à cegueira, a sua paixão pelo piano, a gripe espanhola de 1918 que lhe levou ambos os pais ou as paixões que atravessaram a sua vida: Eleanor, a primeira paixão (aos 14), que terminou quando, por acidente, visionaram um fragmento de um filme porno através de uma janela alheia; Júlia, a criada húngara; Mary, a delicada aprendiz de piano; Lisly, a jovem hippie; Jacqueline, a sua musa e a quem é dedicada a história que Homer nos conta em forma de livro.
Langley, o irmão de Homer, volta a casa mudado pela guerra. Coleccionador louco, algo que herdou do pai, tem um ambicioso projecto a que vai dedicar a sua vida: a recolha dos jornais diários para a edição de um jornal intemporal, que pudesse ser lido para todo o sempre e fosse passível de ser lido em qualquer dia futuro – a edição definitiva e permanente do mundo. É um eterno revoltado, comprando uma colecção de livros de Direito de modo a poder batalhar contra todos os fornecedores de gás e luz, o departamento de bombeiros ou a Direcção-Geral de Saúde.
Através da história deste dois irmãos atravessamos grande parte da história norte-americana: os fantasmas da Primeira Guerra Mundial; a explosão do jazz através das festas que os irmãos promovem na mansão, como salões de chá dançantes, para ganharem umas coroas; a Grande Depressão; o movimento gangster, através da relação que Homer vai ter com Vincent, um temido chefe da máfia; a Lei Seca; a chegada da electrificação à música; a Guerra Fria; a mudança da sociedade vista através do mundo dos negócios, onde as lojas começam a ficar pertença de negros e asiáticos; a Guerra do Vietname, a que temos acesso quando um grupo de hippies se instala na mansão em comunidade aberta.
Doctorow apresenta-nos o retrato de dois seres loucos, geniais e inadaptados, em luta com o mundo exterior, conferindo-lhes uma dignidade que acaba por suplantar toda a tristeza que toma conta de nós quando viramos a página derradeira, e que ficarão para sempre na memória do leitor. Cómico e extremamente comovente, “Homer & Lagley” é um dos grandes lançamentos literários do ano.
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