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I Love Broadway

Queremos amarmo-nos para sempre mas o nosso mundo está a desaparecer.

“I Love Broadway” começa por fazer-nos imaginar néons, plumas, escadarias imensas, coreografias deslumbrantes. Depois leva-nos a uma pequena sala do Cais do Sodré  onde dois actores, com a colaboração de um reduzido número de intérpretes e músicos, nos interpelam sobre o lugar que o espectáculo ocupa nas nossas vidas em crise.

A  2ª criação teatral de Diogo Bento e Inês Vaz continua o roteiro iniciado em “Han Shot First”,  num percurso com assumidas marcas autobiográficas, muito dominado por temas relacionados com a própria actividade teatral, com o espectáculo, com a ligação da obra à vida.  E se em “Han Shot First” vestiam a pele do anti-herói como metáfora dos altos e baixos que é a vida de dois criadores teatrais em começo de carreira no nosso País, “I Love Broadway” surgiu porque queriam trabalhar a partir da ideia dos musicais, do papel que lhes é dado em tempos de crise, de guerra, de recessão.

O espectáculo começa com a famosa canção interpretada por Liza Minnelli em “Cabaret, Adeus Berlim, 1972” de Bob Fosse e depois, numa coreografia muito simples, os corpos dos actores constroem uma escadaria, que recria uma imagem de marca dos musicais da Broadway. A partir daí Diogo Bento e Inês Vaz, num estilo interpelativo, provocador e de comunicação com o público assumem a construção de um discurso interpretado em diálogo com a música (com certos estímulos rítmicos que aceleram ou suspendem o fluxo discursivo) que os traz a eles mesmos para dentro da ficção.

Escrever como quem faz um puzzle

Começaram em Setembro e segundo confessa Diogo, “vimos musicais até à náusea, eu a certa altura já não podia ver ninguém a cantar”. Inês, entusiasta do género, prefere dizer que “sabíamos que íamos ter de ver exaustivamente muitos musicais até começarmos a respirá-los”. Tornaram-se sócios de videoclubes, os amigos emprestaram-lhes filmes. Viram cerca de quarenta filmes, depois distribuíram-nos pelos dois e cada um foi  tirar frases, ideias, assinalar os tempos. “-É um trabalho de puzzle.”- explica Inês Vaz– “Escrevemos os dois. Já tínhamos feito isso com o anterior espectáculo. Desta fez fizemos um documento que reunia todos os excertos, depois organizamo-los por temas e por cores. E assim ficamos a saber que umas coisas tinham a ver com o que queríamos falar no princípio, outras no meio e  outras ainda no fim. “

Quando tudo corre mal, canta e dança, esquece os problemas

Quando mergulharam a fundo nos musicais, e começaram por querer apenas tratar dos grandes êxitos de musicais, mas depois, de pista em pista, foram para outras áreas do musical, perceberam que a Broadway está muito ligada a uma indústria do entretenimento que tem um grande crescimento nos tempos de crise. Hão-de dizê-lo no espectáculo: “- Agarrámo-nos aos musicais e às pipocas, foi o que foi, aproveitamos a lição da história, quando tudo corre mal, canta e dança, esquece os problemas”.

Inês sublinha que um exemplo deste trabalho narrativo “é a constante utilização da metáfora do tempo, a ideia de estar a chover lá fora, está a chover lá fora mas estamos aqui muito aconchegados”. Fazem questão em dizer que não pretendem “moralizar nem fazer juízos de valor”. Aceitam o espaço off da Casa Conveniente, os seis dias de exibição (que multiplicam por dois, já que há duas sessões por dia), mas não se sentem confinados a isso. Querem trabalhar os vários níveis de leitura de modo a que o espectáculo possa ser lido por pessoas com conhecimentos muito diferenciados.

Uma caixa de luz na Rua Nova do Carvalho

Diogo e Inês prometem que a partir da estreia, a Casa Conveniente vai ter uma caixa de luz assinalando a sua Broadway no meio dos néons dos bares da zona. Isso prende-se com o objectivo de trabalharem a Broadway enquanto espaço mítico.

Assumiram sempre que não queriam “ fazer um musical mas um exercício a partir do musical”. Para isso tinham no entanto de utilizar alguns dos dispositivos e recursos do musical. Por exemplo o movimento colectivo em uníssono, o que os obrigou a muitas horas de trabalho.”- Com as condições que temos só nos valeu a generosidade das pessoas, a sua disponibilidade para o trabalho”, desabafa Diogo Bento. Este com as condições que temos do Diogo leva-nos bem para dentro do modo muito precário como se constrói a economia de um espectáculo nos projectos sem uma estrutura de produção. É uma constante em muitos grupos que concorrem aos apoios pontuais saberem que têm de avançar para a criação do espectáculo sem saberem se vão ter apoios.

E como se faz isso? Pede-se ajuda aos amigos, foi aí que foram buscar os colaboradores que cantam, dançam e tocam, pedem-se materiais emprestados aos grupos mais próximos, com quem têm mais cumplicidades, o Teatro Praga, Teatro da Garagem, a Real, o Útero, a Casa Conveniente (que lhes deu o privilégio de inaugurarem o espaço depois das obras).  Inês Vaz reforça este aspecto, “ Há imensa gente que nos ajudou, e neste momento que estamos a viver em que as estruturas que estão a começar não tem dinheiro,  e em que tudo assenta na vontade, é bom saber que há esta cumplicidade entre os grupos”.

“Estamos à venda e não admitimos concorrência”

De uma forma engenhosa, e com ironia, trazem para dentro do espectáculo a metáfora da própria indústria do entretenimento, criando um momento de mercado onde o espectáculo, tudo que o compõe, está à venda. Esta é uma ideia que, noutro contexto, já tinha também sido utilizada por Lúcia Sigalho (que fez um leilão com os objectos de cena dos seus espectáculos querendo mostrar que era a única coisa que podiam fazer para sobreviverem) e que aqui é levada ao extremo da ironia. Tudo está à venda, as luzes, os objectos cénicos, os figurinos, um lugar especial, uma poltrona que fica dentro da zona de representação sendo que o espectador que desembolsar 25 euros pode depois colocar no curriculum que participou no espectáculo. O espectáculo pode também ser vendido em pacotes, a carreira toda, um espectáculo, partes do espectáculo, até à linha. Pode ser comprado por um espectador que o queira ver sozinho, pode ser até comprado por um espectador que queira que os actores representem para ninguém. Vendem também uma performance no ebay, vendem-se a eles próprios enquanto companhia para jantar na Bica do Sapato com um espectador, tudo está à venda.

Uma cavalgada a dois com som de guitarra e bateria

A ideia de que se pode comprar o espectáculo à linha talvez seja um pouco perigosa para espectadores não muito abonados que, como eu, tenham sido apanhados pela intensidade poética do texto criado pela Inês Vaz e pelo Diogo Bento.  Dei por mim a fazer contas a várias frases, a mais cara, imagino, será aquela que roubei para título desta reportagem. E há também a resposta do Diogo a Inês, ela diz, “Os sonhos são azuis e os nossos sonhos realizam-se”, e ele responde, “Mas enquanto esse dia não chega a felicidade é tanta que até custa a suportar”.  É assim, numa forte batida de uma bateria a dialogar com uma bateria em tom de rock, numa cavalgada a dois – que em determinados momentos me levou para o ritmo endiabrado do FMI de José Mário Branco –  com paragens abruptas pelo silêncio, que eu me pus a pensar,  diante da sucessão de frases que me tocavam, pagarei a crédito, que se lixe, espero que façam desconto para jornalistas.

Literatura, Teatro, História da Arte, Filosofia

Diogo Bento e Inês Vaz andam nos trinta anos e os seus trajectos talvez nos ajudem a compreender uma certa forma de estar no teatro hoje. Os dois têm uma formação técnica teatral e, mesmo depois de se terem tornado profissionais, continuam percursos de formação noutras áreas. Inês tira um curso de História de Arte e Diogo, que já era formado em Estudos Portugueses antes de cursar Teatro, faz o mestrado em Filosofia. No teatro, depois de “Han Shot First” e “I Love Broadway” vão fazer uma associação cultural para poderem lutar melhor pela promoção dos seus espectáculos. E querem fazer Frei Luís de Sousa no Teatro Nacional, mergulhando no imaginário nacional naquilo a que chamam – com a ironia que os acompanha sempre quando falam de tudo –  a fase da consagração.



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