INDIE Report 2012
Reportagem diária da 9ªedição do Festival de Cinema Independente de Lisboa
dia 10
“Formentera”, de Ann-Kristin Reyels
Ann-Kristin Reyels não me quis desmentir: “Formentera” é mais uma obra da competição internacional a lidar com a família. Quando um casal, de férias, visita a “família” do homem (os parentescos, a haver, são deixados vagos), que vive em comunidade meio hippie na ilha de Formentera em Espanha, este tem de decidir entre a relação com a mulher e uma vida com os seus. Nina, a protagonista, é o elemento estranho, a ameaça, o inimigo daquele núcleo familiar. Ou, visto de outro prisma, a família (principalmente a ponta-de-lança Mara, uma “força da natureza”) é a força a combater. Esta cisão é inteligentemente representada na violência de um quase-crime. Aliás, se “Formentera” não deslumbra, não deixa de ser um filme inteligente e bem feito.
“Berlin Telegram”, de Leila Albayaty
Depois de uma separação difícil com o namorado, Leila Albayaty, cantora e cineasta, resolveu filmar a sua nova vida em Berlim (os encontros e desencontros, os avanços e recuos na superação da dor) num documentário meio ficcionado, ou numa ficção meio documental. “Berlin Telegram” é uma “carta” “escrita” ao seu ex-namorado, portanto uma coisa muito pessoal e privada, que Albayaty expõe ao espectador do filme. Numa ficção deste tipo é complicado digerir momentos como aquele, logo ao princípio, em que a realizadora/protagonista chora perante a câmara. Se real, não é para olhos nossos; se encenado, é puro exibicionismo. Não ajuda, ainda que alguns “secundários” sejam obnóxios e que outros debitem profundidades bacocas em Inglês macarrónico (sem que a realizadora repare sequer). Apesar da fotografia não ser má, “Berlin Telegram” não é bem Cinema, nem a gente tem muito a ver com isto. O pior filme da competição internacional.
“L’estate de Giacomo”, de Alessandro Comodin
Em “L’estate de Giacomo”, Alessandro Comodin segue de muito perto, vai literalmente atrás de (em vários planos de costas), Giacomo, um rapaz surdo, e a sua amiga Stefania, num Verão quente e sonolento, com uma câmara tão naturalista que se torna fantasiosa. Repetem-se as deambulações e as brincadeiras de criança (Giacomo é uma criança crescida), pelas feiras, por bailes, por florestas, no rio, num idílio entre amigos, completamente separados do resto do mundo. Ao contrário dos outros filmes da competição internacional, a família não faz qualquer aparição neste universo fechado e infantil. A montagem é do Português João Nicolau.
“Los Angeles Plays Itself”, de Thom Andersen
O crítico e professor Thom Andersen, angelino dos sete costados, juntou pedacinhos de vários filmes — antigos e novos, a cores e a preto-e-branco, independentes e grandes produções — que têm por cenário Los Angeles (ou “personagem” — daí o título), recriando não só a história da cidade (uma história de perda de identidade, de uma não-cidade, muito por culpa de Hollywood), como a evolução da sua representação nos filmes. Com quase três horas, “Los Angeles Plays Itself” é um ensaio interessantíssimo sobre o Cinema, veiculado por um narrador rabugento (ou melhor, as palavras de Andersen, que este diz, é que são rabugentas), que, acima de tudo, não quer que chamem à sua cidade L.A.
“Alpeis”, de Yorgos Lanthimos
Babis Makridis, realizador de “L”, tem muito a aprender sobre o absurdo (e Cinema também) do seu compatriota Yorgos Lathimos. Depois de “Kynodontas”, que (em boa hora) estreou em Portugal como “Canino”, Lanthimos lança-se a uma premissa tão mirabolante como a desse filme: em “Alpeis”, um grupo de pessoas, auto-denominado Alpes (como os montes), substitui (faz-se passar por) recém-falecidos junto dos seus entes queridos, com o intuito de lhes acalmar a dor, recebendo, claro está, pelo serviço. O realizador interessa-se sobretudo pelos efeitos deste modo de vida num dos membros do grupo, uma mulher que, às tantas, já não sabe quem é, nem quem são os seus (um desfasamento da realidade que se alastrará a outras personagens e ao espectador). Nesta altura, já se reconhece um estilo Lanthimos: uma mistura bastante forte de humor e violência (física e psicológica).
dia 9
“Táo Jie”, de Ann Hui
Ann Hui fez parte da nova vaga do Cinema de Hong Kong nos anos 80, mas, pegando nos últimos filmes, não se interessa pelas acrobacias e chuvas de tiros que tornaram famosos os seus contemporâneos. “Táo Jie” (repete dia 6 de maio, domingo, às 23h00, no Cinema Londres) começa no momento em que uma empregada (a cantora de Cantopop Deanie Ip, extraordinária) que serviu durante muitos anos uma família (de momento, só o filho, interpretado pelo famosíssimo Andy Lau) se instala de mote próprio num lar de terceira idade, depois de sofrer um AVC, preparando-se para passar lá o resto da vida. Uma vida simples, como diz o título em Inglês (e provavelmente o cantonense), uma vida comum à maioria dos mortais. Com mão sábia, Ann Hui instila uma notável suavidade e beleza nesta história triste sobre a doença, a velhice e a morte. O Cinema de Hong Kong, em queda nos últimos tempos, ainda guarda alguns tesouros.
“Stillleben”, de Sebastian Meise
De novo, a família. De novo, a família em desintegração. Por sorte ou escolha, a competição internacional do Indie este ano tem abordado insistentemente esses temas. Em “Stillleben”, é um segredo bem escondido durante muitos anos — o desejo (reprimido) do pai pela filha — que destrói o núcleo familiar, ou melhor, que revela os problemas que ninguém queria ver. Conduzido com eficácia narrativa (poucas palavras) por Sebastian Meise, o filme funciona, por vezes, como uma peça teatral, em que as personagens entram e saem de cena para melhor servi-la. É aí que reside o maior problema de “Stillleben”: o mecanismo está completamente à mostra. Em compensação, é um drama em surdina, o que é, de certa forma, refrescante: não há grandes confrontos, nem quaisquer explosões. A repressão do desejo também é a repressão do afecto e, no fim, a repressão da violência.
“L”, de Babis Makridis
E para confirmar a regra na competição internacional, uma excepção: “L” (repete dia 5 de maio, sábado, às 16h00, no Cinema São Jorge) não é sobre a família (embora esta circule por lá, de carro). Na verdade, entre lutas condutores de carros e motards, mortos que são ursos, distribuidores de mel, é difícil perceber sobre o que é. Procurando o absurdo pelo absurdo (não é sátira, nem busca qualquer aproximação à realidade), “L” peca por não ter muita graça (apesar de alguns momentos interessantes, que se esgotam rapidamente), nem ter grandes ideias de Cinema. Dos mais fracos da competição.
dia 8
“Terri”, de Azarel Jacobs
A presença de John C. Reilly indiciava uma comédia, a aura de filme independente americano fazia antever um feel good movie ao jeito de “Little Miss Sunshine”. E a verdade é que “Terri”, sobre um rapaz obeso e inadaptado, não anda longe desses territórios. No entanto, apesar de pôr tudo no seu lugar de modo a que o filme encaixe devidamente nos géneros referidos (faz rir e faz o espectador sentir-se bem consigo mesmo), Azarel Jacobs explora um pouco mais as convenções. Sem as dinamitar, aplica-lhes alguns curtos-circuitos — por exemplo, se há o habitual discurso do mentor para elevar a moral do protagonista, esse discurso é desmontado (desmentido), embora não seja anulado. O espectador fica, pelo menos, com a impressão de algo mais verdadeiro (ilusória também). De qualquer forma, para além do gosto pelo absurdo, o melhor do filme é a colecção de misfits e losers (no fundo, todas as personagens), boa companhia para hora e meia.
“O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça Filho
Na competição internacional, repete-se o tema da família, desta vez enclausurada num condomínio fechado no Recife, afastada por todos os meios e mais alguns dos perigos circundantes. Ao contrário da colheita de filmes brasileiros que costuma ser enviada para Portugal, a violência em “O Som ao Redor” (repete dia 4 de maio, sexta-feira, às 18h45, no Cinema Londres) demora a explodir, espalhando-se por boa parte dos 131 minutos, numa tensão que desinquieta o espectador que sabe que a coisa tem de rebentar por algum lado. Mérito de Kleber Mendonça Filho, que joga muito bem com as expectativas, trabalhando o som (à maneira dos filmes de terror) e a câmara suave e deslizante que perscruta tudo e todos (lembrando o Kubrick de “The Shining”). Só é pena que o realizador, no último terço do filme, deixe lassar essa tensão (“O Som ao Redor” funcionaria melhor com menos vinte minutos, se calhar), se bem que consiga terminar o filme tão bem como começou.
Curtas
De um grupo de curtas-metragens mais interessante do que o do dia anterior — “La tristesse de l’éléphant”, de Bartlomiej Woznica, que, copiando a montagem fotográfica de “La jetée”, de Chris Marker, ensaia uma memória de um futuro que já não se lembra do passado; “Or Anything at All Except the Dark Pavement”, de Théodora Barat, um interessante exercício (um travelling silencioso de cerca de seis minutos) que se perde um pouco no meio das outras curtas; “Praça Walt Disney”, de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, que recria (através da montagem, por vezes, muito inteligente) 24 horas na vida de um bairro do Recife, o melhor acompanhamento para “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça Filho —, duas que sobressaem: “Polvo”, de Angela Reginato, um extraordinário filme hauntológico, em que a narradora/realizadora revive (escava, submerge) as memórias da sua infância na Cidade do México; e “O Que Arde Cura”, primeira realização a solo de João Rui Guerra da Mata (ainda que com a presença tutelar de João Pedro Rodrigues, que protagoniza), mais um trabalho sobre a memória (do incêndio do Chiado, com recurso a imagens de arquivo; dos anos 80 lisboetas; de um amor perdido), tornado mais pungente pela artificialidade do estúdio.
dia 7
“Whore’s Glory”, de Michael Glawogger
O documentarista Michael Glawogger (Herói Independente no IndieLisboa 2006) constrói um tríptico sobre a prostituição: começa num sofisticado bordel na Tailândia, onde as prostitutas estão dispostas num “aquário”; passa pelas ruelas estreitas do Bangladesh, uma sociedade tão estratificada como a do mundo lá fora; e acaba na “Zona” do México, onde se reza à Santíssima Morte e se fuma crack. Se no primeiro quadro, o título “Whore’s Glory” (repete dia 4 de maio, sexta-feira, às 21h30, na Culturgest) não parece totalmente descabido (porventura porque se vê menos), os outros dois completam uma descida aos infernos, pouco consentânea com visões românticas da profissão mais antiga do mundo. No entanto, há qualquer coisa que desagrada no documentário: Glawogger procura uma certa estética da (na) degradação; a banda-sonora, por exemplo, embeleza as imagens e corta alguma náusea que o espectador possa sentir.
“Des épaules solides”, de Ursula Meier
Ursula Meier é um dos nomes mais conhecidos a sair da nova geração do Cinema Suíço (foi premiada este ano em Berlim com “L’enfant d’en haut — exibido hoje, quarta-feira, às 21h30, no Cinema Londres). “Des épaules solides” é a sua primeira longa-metragem, filme tão tenso como os corpos dos jovens atletas que retrata; espécie de “Black Swan” avant la lettre, sem a fantasmagoria e restantes floreados, mas com a mesma obsessão da protagonista (obstinada em ser a melhor, custe o que custar) filmada com a mesma câmara nervosa e impaciente. Ficará na memória a notável cena de “sedução” entre o rapaz e a rapariga. Por motivos pessoais (leia-se: fomeca), só vi metade de “Tous à Table”, a curta-metragem de Meier que acompanhou “Des épaules…”, o bastante para ser absorvido naquele jantar de amigos, que se degladiam por conta de uma adivinha que ninguém consegue resolver e revela um pouco de todos os convivas.
Curtas
Quatro curtas-metragens tépidas (nenhuma sobressaiu, nem para o bem nem para o mal) entre o experimental e o documentário: Em “The Night of The Moon Has Many Hours”, de Mauricio Arango, alguém pesca corpos de um rio, perfazendo pouco mais do que uma anedota bem contada; Angèle Chiodo, sem sair de casa, com a ajuda da avó e de alguns objectos corriqueiros, faz um interessante “documentário” animado sobre a história do linguado em “La Sole, entre l’eau e le sable”; A câmara de John Skoog desliza sobre alguns quadros absurdos em “Sent på jorden”; Em “Armand 15 ans l’été”, Blaise Harrison persegue um rapaz gordinho e efeminado (Armand) durante umas férias de Verão, capturando bem o calor nas praias (fluviais), a modorra das tardes, e as hormonas em ebulição dos adolescentes, distante, porém, do rasgo que levaria o filme para outras paragens.
dia 6
“Em Segunda Mão”, de Catarina Ruivo
Pedro Hestnes morreu antes da estreia de “Em Segunda Mão”, ao que julgo, o seu último filme, pelo menos, o último filme que protagonizou. As marcas da doença (uma magreza extrema) são bem visíveis, mas nunca referidas, no que acaba por ser uma justa homenagem ao seu trabalho de actor. No resto, “Em Segunda Mão” não desmerece a condição de último filme de alguém tão importante para o Cinema português das últimas décadas. História de duplos, de vidas usadas (em segunda mão), constrói uma lógica de sonho (que vira pesadelo), preocupando-se pouco com qualquer verosimilhança e socorrendo-se, de modo a evitar a sisudez que se vislumbra a dada altura, do humor (assente numa notável galeria de secundários). Ressalta, ainda, a óptima fotografia, que salva Lisboa dos lugares comuns e repisados, da sua personagem cinematográfica habitual.
“Toata lumea din familia noastra”, de Radu Jude
Se a família de “De jueves a domingo”, de Dominga Sotomayor, partia em viagem para expiar o fantasma da desagregação, a de “Toata lumea din familia noastra” (repete dia 4 de maio, sexta-feira, às 16h00, no Cinema São Jorge) não vai a lado algum; ao invés, fecha-se em casa e implode. Quando o pai de Sofia a vai buscar para passar umas férias com ela (usufruindo dos poucos dias a que tem direito depois do divórcio), monta-se uma tempestade familiar, numa escalada de violência até aos píncaros, que mete ao barulho mãe, padrasto, avô, e polícia. E compromete o espectador para lá do que se calhar ele gostaria. O referido “De jueves…” já havia causado muito boa impressão; este “Toata lumea…”, tremenda comédia negra, não lhe fica nada atrás. De repente, a competição internacional atinge um patamar de qualidade bastante elevado.
“Michael”, de Markus Schleinzer
Dá ideia que, ao contrário do que pretendia — dar o ponto de vista de um pedófilo —, Markus Schleinzer nunca consegue ver para além do monstro, ou melhor, que não vai ao encontro desse “outro”. Por isso, a personagem titular de “Michael” é apenas um conjunto de características (as já esperadas): apagado, metódico, solitário, incapaz de paixão (jamais se sente a mínima atracção sexual pelo miúdo, na relação que o define e representa a sua desgraça). Assim, o filme fica-se pelo choque (e é menos chocante do que quer ser) e pelo suspense às três pancadas (a sequência final é particularmente exasperante: no intuito de deixar o espectador ansioso, quebram-se as regras da lógica, as mesmas em que “Michael” se baseou até então). Para se fazer o filme programado, era preciso um realizador corajoso; este não é.
dia 5
“Ikhtifa’at Soad Hosni ath-Thalathah”, de Rania Stephan
Rania Stephan ensaia em “Ikhtifa’at Soad Hosni ath-Thalathah” (repete dia 6 de maio, domingo, às 14h45, no Cinema Londres) uma aproximação à biografia de Soad Hosni (a Sophia Loren/Elizabeth Taylor egípcia, famosa nos anos 60 e 70), através de excertos de filmes em que entrou. Uma tragédia (real) em três actos, encenada com recurso apenas a imagens de ficção, que traça a vida de Hosni desde a juventude e a subida ao estrelato, passando pela fase em que era sobretudo a bomba sexual do Cinema Árabe, pelos casamentos, até ao aprofundar do negrume dos últimos anos, que resulta em violência (violação?) e culmina no suicídio da actriz em Londres. “Ikhtifa’at Soad Hosni…” é bem mais interessante do que “Rua Aperana 52”, de Júlio Bressane, que usa de métodos semelhantes.
“Vou Rifar Meu Coração”, de Ana Rieper
A música brega (mais coisa menos coisa, o equivalente brasileiro da música pimba; sobre dores de corno e outro males de amor) não goza da melhor reputação. No entanto, Ana Rieper não trata as suas “personagens” — autores e ouvintes da dita música — com qualquer desprezo ou condescendência. “Vou Rifar Meu Coração” (repete dia 6 de maio, domingo, às 18h45, no Cinema São Jorge) não tem o riso escarninho como objectivo (embora alguns espectadores pareçam predispostos a pensar que sim), prefere dar voz aos que literalmente não têm voz nos meios de comunicação elitistas, ou seja, de classe alta: os pobres e desfavorecidos do Nordeste brasileiro. Sem almejar tão alto quanto “Aquele Querido Mês de Agosto” (um parente português), de Miguel Gomes, “Vou Rifar Meu Coração” é um belo documentário.
“De jueves a domingo”, de Dominga Sotomayor
Por entre algum entulho e obras menores (como é normal num festival com tantos filmes como o Indie), é um prazer encontrar algo assim, que vale por todas as desilusões. Em “De jueves a domingo”, Dominga Sotomayor filma, entre a ternura e a crueldade, uma última viagem em família, antes da separação certa do casal. O filho, muito miúdo, mal se dá conta do que se passa, mas a filha, mais velhinha, observa. O argumento, primoroso, não precisa de debitar informação por palavras, esta passa pelo justíssimo olhar da criança (que será o do espectador); o rigor formal (a câmara muitas vezes parada, sempre pensada, tirando o melhor partido do carro em que a família viaja) conforma-se-lhe perfeitamente. Até agora, o melhor filme da competição internacional. Excelente primeira obra.
dia 4
“Complices”, de Frédéric Mermaoud
Por muito boas intenções com que tenha sido criado, “Complices” mais não é do que um episódio comprido da série CSI (e dos piorzitos). O péssimo argumento, com exposição a martelo e situações muito forçadas (e previsíveis), é filmado num registo idêntico ao da grande maioria dos procedurals em exibição na televisões norte-americanas. Até a temática “provocatória” da prostituição juvenil se insere bem nesse contexto. A única coisa que não é completamente má é a relação dos adolescentes, mais pelos actores que os interpretam do que por qualquer pormenor de escrita ou realização.
“Fat Cat”, de Patricia Gélise e Nicolas Deschuyteneer
Logo às primeiras imagens, e aquando da entrada da banda-sonora, percebe-se que “Fat Cat” (repete dia 2 de maio, quarta-feira, às 21h15, no Cinema Londres) joga na artificialidade do Cinema (o que se tem visto pouco no Indie): é um film noir passado numa Bruxelas anacrónica (parece que nos anos 70) com laivos de Kaurismäki (nem falta a banda a tocar). O único problema de “Fat Cat” é que talvez seja demasiadamente engraçadinho para o seu próprio bem (nunca levanta voo, preso à estilização). Ainda assim, é um filme bastante simpático.
“He Was a Giant with Brown Eyes”, de Eileen Hofer
Muito por necessidade (falta de dinheiro e de produtor), “He Was a Giant with Brown Eyes” (repete dia 30 de abril, segunda-feira, às 19h00, no Cinema Londres; e no dia 2 de maio, quarta-feira, às 19h00, no Cinema Londres) caminha entre o documentário e a ficção, retratando o regresso a casa (o Azerbaijão) de uma rapariga emigrada na Suíça (depois do divórcio dos pais), Lá, reencontra a irmã de que está afastada (cujo namorado estar prestes a ir para a tropa durante um ano), o pai (em vias de se casar pela terceira vez), avós, e restante família. “He Was a Giant…” é um filme bonito (por vezes, bonitinho) sobre a família e as raízes.
dia 3
“Schönheit”, de Carolin Schmitz
As “personagens” de “Schönheit” (repete dia 5 de maio, sábado, às 14h45, no Cinema Londres) usam o próprio corpo como mais um produto a ser comprado e melhorado, mais um produto que lhes valida a existência. O registo distante e cirúrgico de Carolin Schmitz cria, a dado momento, a dúvida se o documentário não é na verdade um mockumentary, tal a normalidade com que é tratada a extravagância. No entanto, algo evita que “Schönheit” seja apenas um mo(n)struário de pequenos ridículos: uma leveza que se diverte com, mas não julga, quem olha. Boa surpresa.
“Bestiaire”, de Denis Côté
A começar pelo título, “Bestiaire” (repete dia 2 de maio, quarta-feira, às 16h30, no Cinema Londres) recorda o estudo dos animais de antigamente: a taxidermia (como no Museu de História Natural de Nova Iorque, e noutros, imagino); o desenho; os bichos em cativeiro. Denis Côté filma um parque/jardim zoológico com gosto pela abstracção, conseguida, paradoxalmente, através de planos fixos e muito concretos, em que bois, lamas, veados, avestruzes, macacos e humanos entram e saem, ignorando o enquadramento. “Bestiaire” é, pelo menos, um exercício muito interessante.
“Rua Aperana 52”, de Júlio Bressane
Se conhecesse o resto da obra de Júlio Bressane, talvez tivesse encontrado um caminho para a “Rua Aperana 52” (repete dia 6 de maio, domingo, às 23H15, no Cinema Londres). Assim, pareceu-me uma masturbação/regurgitação demasiadamente pública. Cartografia de um lugar no Rio de Janeiro, cartografia da memória desse lugar, “Rua Aperana 52” acumula fotografia antigas, sambas de outros tempos, e excertos de filmes de Bressane. Neste espectador, em vez de qualquer aproximação ao mundo do realizador, provocou apenas o tédio e a vontade de sair da sala.
“The Color Wheel”, de Alex Ross Perry
Os irmãos de “The Color Wheel” (repete dia 30 de abril, segunda-feira, às 21h15, no Cinema Londres; e no dia 1 de maio, terça-feira, às 21h30, no Cinema Londres) falam muito e não dizem nada, um mal de que padecem os que povoam o mumblecore, movimento cine-hipster em que este filme se inscreve. De tão ligado às personagens, por servir e servir-se delas, “The Color Wheel” acaba por ser tão autista quanto elas. No fim, num filme que é quase só feito deles, o único prazer advém de um ou outro diálogo mais bem conseguido.
“Garçon Stupide”, de Lionel Baier
Exibido dentro da mostra do novo Cinema Suíço “Cinema Suíço – Um Bando à Parte”, “Garçon Stupide” revela as virtudes e defeitos da primeira obra que é (ou foi, é de 2004): nos primeiros dois terços, impressiona pela vitalidade da câmara à mão (o filme foi rodado por uma equipa de dois: Lionel Baier e um técnico de som), da representação do protagonista não-actor, da liberdade formal, pela presença do realizador enquanto personagem (corajoso), pelos encontros amorosos fulminantes; no último terço, alonga-se, arrasta-se, empilha situações, desgasta a boa impressão criada. A acompanhar “Garçon Stupide”, “Émile de 1 à 5”, uma deliciosa curta-metragem vagamente baseada na obra de Jean-Jacques Rousseau, também realizada por Baier.
Dia 2
“Over Canto”, de Ramon Gieling
Documentário acerca da obsessão sobre uma peça de música, “Over Canto” (repete dia 6 de maio, domingo, às 19h00, no Cinema Londres) é sempre demasiadamente perfeitinho e bonitinho, como alguns, os não-iniciados, descrevem “Canto Ostinato”, a composição em questão, da autoria de Simon ten Holt. É como se, de alguma forma, o filme de Ramon Gieling quisesse emular os efeitos que a música provoca nos ouvintes, entre o calmante e o analgésico (para as dores do corpo e da alma). Sai uma valente xaropada.
“Voie Rapide”, de Christophe Sahr
Primeira longa-metragem da competição internacional exibida, “Voie Rapide” (repete dia 29 de abril, domingo, às 16h45, no Cinema Londres; e no dia 30 de abril, segunda-feira, às 00h00, no Cinema Londres) é uma obra bem pensada e bem feita, cujo maior pecado é exactamente não ultrapassar essa condição. O filme retrata a descida aos infernos de um jovem adepto do tuning que atropela e mata um peão e, como as “personagens” de “Into the Abyss”, terá de lidar com as consequências desse crime: o sentimento de culpa que quase o destrói (mas redenções destas só mesmo na suprema fantasia do Cinema). O filme tem um grande ponto a seu favor: termina com uma canção de Bill Callahan.
“Rafa”, de João Salaviza
Um dos filmes mais esperados do Indie deste ano, “Rafa”, o vencedor do Urso de Ouro para curtas-metragens no Festival de Berlim, teve lotação esgotada. A curta demonstra mais uma vez o estilo apuradíssimo de João Salaviza: poucas falas, planos estudados e minuciosos, movimentos de câmara subtis. E a certeza da mão do jovem realizador Português: a personagem titular, um jovem suburbano numa aventura na cidade (um peixe fora de água), está sempre em campo, enquanto o contra-campo dos “inimigos” (a polícia burocrática, os skaters vingativos) é dado pelo som (nunca é visível). No entanto, o final abrupto deixa a sensação de que fica a faltar qualquer coisa.
“Dragonslayer”, de Tristan Patterson
Josh “Skreech” Sandoval é um skater genial que não teve cabeça para se tornar num profissional e ganhar bom dinheiro; um rebelde que desconfia do sucesso; um individualista norte-americano (como os cowboys de antanho), nascido nos subúrbios da soalheira Califórnia. “Dragonslayer” (repete dia 4 de maio, sexta-feira, às 23h45, no Cinema Londres), documentário de Tristan Patterson, é um bildungsroman, em que o “protagonista” aprende que o sonho norte-americano é um emprego banal e uma família e não a vastidão do horizonte, a vida nómada e desregrada.
“Punk in Africa”, de Keith Jones e Deon Maas
Toda a expectativa que o título causa é rapidamente frustrada; “Punk in Africa” (repete dia 6 de maio, domingo, às 21h30, no Cinema São Jorge) é um mau documentário televisivo, que não sabe explorar o bom material do primeiro terço (não era fácil ser punk na África do Sul durante o Apartheid), e se perde completamente nos restantes e desinteressantes dois terços, que andam à volta de umas quantas bandas de ska copistas, muito longe de qualquer rebelião ou do fulgor dalgumas misturas com música africana, que aparecem aqui e ali e depressa saem de cena.
Dia 1
“Into the Abyss”, de Werner Herzog
Werner Herzog tem prazer em documentar comportamentos fora do comum, em perscrutar o lado irracional do bicho-homem (especula-se que gosta de mostrar os frágeis suportes em que se sustenta a sociedade). Já era assim em “Grizzly Man”, cujo “protagonista”, Timothy Treadwell, um actor falhado, procurava o amor dos ursos pardos e ia viver com eles, uma decisão que lhe custaria a vida (foi comido por um dos ursos). Em “Into the Abyss” (repete dia 4 de maio, sexta-feira, às 19h00, na Culturgest), sob a capa de um libelo contra a pena de morte (que também é), analisa as consequências de um triplo-homicídio, nos assassinos, nas famílias destes, nas das vítimas, como também nos agentes que devem fazer cumprir a pena capital (o capelão, o guarda prisional). Ou melhor, como todas estas pessoas lidam com os acontecimentos — racionalização, negação, fuga para a fantasia ou para os “pequenos prazeres” da vida, isolamento —, uma “maneira de ser” que se encontra nos restantes elementos da sociedade em que vivem (várias “personagens” referem que preferem não pensar nas coisas) e que é, provavelmente, a única cola que a sustém (como a qualquer sociedade humana?). “Into the Abyss” é um filme duro, que o sotaque alemão do realizador-narrador amolece, encontrando a comédia (negríssima) no meio da morte e da dor.
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