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Macaroni Combat

Os bastardos que inspiraram Tarantino.

Pelo menos desde “Kill Bill”, o burburinho que surge com cada novo filme de Quentin Tarantino tem sido acompanhado de um ressurgimento de interesse nas fontes de inspiração a que o realizador presta homenagem. Na minha opinião, reduzir qualquer obra de Tarantino (quanto mais um filme tão subtil e bem trabalhado como “Inglourious Basterds”) ao estatuto de pastiche significa ignorar os seus consideráveis talentos como guionista, capaz de criar personagens credíveis e poderosas a partir de premissas frequentemente absurdas, bem como a linguagem visual que, apesar das incontáveis homages, é mais do que a soma das suas partes. Mas ao mesmo tempo, seria estúpido negar que Tarantino é também um declarado arqueólogo, acólito e fanboy de cinema, com uma paleta de gostos exótica e diversa. Esta não se restringe de forma alguma ao cinema trash, como julgam alguns dos seus críticos mais ferozes (“Inglourious” por exemplo homenageia Pabst e Ford, e com sorte um dia ainda vamos ver o “drama no estilo de Eric Rohmer” que Tarantino costumava ameaçar em entrevistas); mas a sua paixão pelas áreas menos respeitadas do cinema mundial é uma mais valia, permitindo que obras esquecidas ou desprezadas tenham uma nova oportunidade de ganhar um público para além de meia dúzia de entusiastas – mesmo que nem todos os filmes abençoados pelo realizador o mereçam.

Com isto em mente, debrucemo-nos sobre as origens de um dos elementos mais óbvios do código genético da última obra de Tarantino: o original “Inglorious Bastards”, realizado por Enzo G. Castellari em 1978.

Men on a Mission

Encontram-se no início dos anos 60, em filmes como o western “The Magnificent Seven” e o épico da Segunda Guerra Mundial “The Great Escape”, as raízes dum certo sub-estilo do cinema de Hollywood: filmes longos, criados em torno de um conjunto de HOMENS MACHOS MACHÕES GRRRR que se dedicam a uma tarefa comum e, através de planos cuidadosos e trabalho de equipa, conseguem concretizar a sua missão (mas não antes de haver algumas cenas de acção mirabolantes e uma ou duas mortes melodramáticas.) É talvez um dos estilos mais estereotipadamente masculinos à face da terra, apelando à mentalidade de quadrilha (ou “complexo tartaruga ninja”, como lhe gosto de chamar), e é quase possível sentir o sabor a cerveja e tremoços quando se vê estes filmes. Mas toda uma geração de cinéfilos foi marcada pela tendência, e toda uma geração de vedetas de Hollywood – talvez a última geração descomplexadamente máscula da Hollywood clássica, a última antes do aparecimento duma imagem mais complicada e neurótica de masculinidade, encarnada por Pacino, DeNiro e companhia – obteve alguns dos seus melhores papéis em filmes deste estilo, alternando os seus star vehicles de herói solitário com épicos de equipa. Steve McQueen, Clint Eastwood, Lee Marvin, Charles Bronson, James Coburn e Ernest Borgnine são os nomes mais conhecidos desta fornalha.

Este estilo de buddy action movie pode ser aplicado a vários tipos de cenário: “The Magnificent Seven”, “The Professionals” e, mais tarde, “The Wild Bunch” são westerns; “The Italian Job” e o original “Ocean’s Eleven” heist movies. Mas rapidamente, o cenário militar revelou ser o melhor ambiente para a fórmula: explicava rapidamente a presença das personagens e o seu estatuto de equipa – e para além disso, era um bom isco de marketing para atrair sucessivas gerações de veteranos de guerra (imaginem as filas de taxistas se estreasse em Portugal um divertido épico sobre a guerra colonial!)

A Dirty Business

Os anos sessenta, não é preciso dizer a ninguém, foram tempos de mudança. Com o lento colapso do sistema de censura da Hollywood clássica, e uma sociedade cada vez mais atribulada, começavam a surgir oportunidades para visões mais caóticas, complexas e niilistas dos estilos de cinema tradicionais. Também o filme de guerra sofreu, nessa década, profundas alterações.

Em “The Dirty Dozen” (“Doze Gloriosos Patifes” em Portugal), uma equipa de criminosos psicóticos é utilizada pelas forças aliadas para eliminar um grupo de comandantes nazis de forma traiçoeira e desumana. A começar pelo título, tudo neste filme vai contra a imagem imaculada do esforço americano naquilo que foi certamente o conflito menos moralmente ambíguo do século XX. Inicialmente, o que choca é a ideia de perdoar criminosos amorais a troco dos seus serviços: mas à medida que o filme se vai desenrolando, e a nossa simpatia para com os protagonistas vai crescendo, o que dói realmente é ver o aparato militar a dispor de seres humanos como se fossem tostões. E como se isto não fosse já subversão suficiente, no clímax do filme os Patifes trancam as suas vítimas (que, para além dos militares nazis, incluem várias mulheres civis) numa cave, acabando por causar uma explosão que resulta na sua chacina total. Por entre os gritos e as tentativas desesperadas de abrir as portas trancadas, a mensagem que o realizador Robert Aldrich quis lançar com o filme em 1967 ouve-se bem claro: mesmo quando estás a lutar contra o mal em pessoa, a guerra é algo que dá voltas ao estômago.

Macaroni Combat

A “The Dirty Dozen” seguiram-se múltiplos filmes empenhados em trazer uma imagem menos branqueada da Segunda Guerra Mundial. Um dos exemplos mais bizarros – e de maior sucesso – será “Kelly’s Heroes”, em que um esquadrão de soldados americanos (incluindo, estranhamente, um hippie, protagonizado por Donald Sutherland) segue em perseguição de ouro nazi. Sam Peckinpah, o rei dos westerns, aplicou a sua fórmula de violência em câmara lenta ao estilo com “Cross Of Iron”, um filme brutal que virou êxito de bilheteira na Itália.

O cinema italiano já tinha experiência em adaptar estilos americanos. No início dos anos 60, “A Fistfull Of Dollars”, de Sergio Leone, lançou a vaga dos spaghetti westerns, que pegavam na fórmula americana tradicional e adicionavam niilismo, paisagens europeias e uma visão fetischizada da violência. Visto que a natureza mais crua destes filmes teve um impacto enorme sobre o cinema de Hollywood, pouco espanta que as audiências italianas, vendo “The Dirty Dozen” ou “Cross Of Iron”, reconhecessem algo que as estimulava. Mais do que uma década depois do seu surgimento nos E.U.A., a febre dos filmes men on a mission tomou o cinema italiano, numa tendência que posteriormente foi categorizada como “macaroni combat”.

O estilo macaroni combat não tem uma base de fãs tão solidificada como os spaghetti westerns ou os giallos (filmes de terror italianos.) De momento, os entusiastas de culto ainda estão ocupados a reunir listas dos filmes a que se pode aplicar o termo – um “Five For Hell” aqui, um “Dirty Two” acolá. Mas graças à exposição mediática de Tarantino, “Inglorious Bastards” já se encontra disponível em DVD, numa edição cuidadosa que inclui comentário do realizador e uma conversa entre Castellari e Tarantino.

Inglorious Bastards

A premissa principal de “Inglorious Bastards” é simples mas interessante: um grupo de soldados americanos está em vias de ser transportado para uma prisão militar, por crimes que vão da deserção até ao homicídio; no entanto, os guardas são mortos num ataque aéreo alemão, e os ex-prisioneiros decidem avançar para o território neutro da Suiça. Começa assim uma espécie de odisseia pelo território francês, caracterizada por numerosos conflitos, encontros e desencontros.

Enzo G. Castellari, o realizador de “Inglorious Bastards”, não é um Sergio Leone ou um Dario Argento: não é um génio que consegue transcender ou enaltecer o material que lhe é dado. Mas é um realizador dinâmico, criativo, empenhado em assegurar que o seu público nunca sinta tédio. É também um apaixonado por cenas de acção e stunts alucinantes. Seja no início de carreira trabalhando em spaghetti westerns como “Keoma” ou durante a sua aclamada fase de filmes policiais com Franco Nero (incluindo “Street Law”, obra com uma excelente banda sonora psicadélica e uma mensagem de justiça vigilante que lhe valeu acusações de fascismo na imprensa esquerdista italiana), os filmes de Castellari apostam em acção frenética, entretenimento puro e um certo nível de inteligência superior ao que parece exigido pelas suas premissas. Não que não haja também momentos de gloriosa estupidez: quando “Jaws” lançou uma febre por filmes de tubarões na Itália, a resposta de Castellari foi “Shark Hunter”, um filme em que Franco Nero (de cabelo loiro oxigenado e bigodinho) mergulha para dar porrada em peixes ao som de Italo-Disco.

Se “Inglorious Bastards” por si já superou as (diminutas, honestamente falando) expectativas deste espectador, o material extra disponível na edição DVD da Severin inspira ainda maior respeito pelo seu realizador. Castellari conta como, a certa altura, a situação política volátil da Itália levou a que o governo proibisse o uso de armas de fogo. O resultado deste contratempo pode ser visto no ecrã, quando a equipa dos bastardos assalta um castelo ocupado pelos nazis e apodera-se de facas e espadas anteriormente usadas como estandartes. Castellari, que não queria interromper a produção, tinha assim encontrado a sua solução – a palavra desenrasque pode ser exclusivamente lusitana, mas o conceito vive bem na Itália. Igualmente caricata é a história da distribuição internacional do filme: a certa altura, nos E.U.A., a presença do ícone blaxploitation Fred Williamson no elenco do filme levou a que este fosse relançado para um público negro, com o título “G.I. Bro” e a tagline “if you’re a kraut – he’ll knock you out!”

É perigoso ver o “Inglorious Bastards” com demasiadas expectativas: trata-se de um filme de série B, sem intenções de sair do seu género, e as falhas são claras e múltiplas. Há uma cena dos protagonistas a chapinharem num rio com fraeuleins locais claramente incluída exclusivamente para satisfazer um quociente de nudez feminina; a caracterização de algumas das personagens é inconstante, para dizer o mínimo; e há um enredo amoroso que é rapidamente abandonado a favor de outro mais apetecível sem qualquer explicação aparente. Mas apesar dos seus pontos fracos, “Inglorious Bastards” é um filme empolgante, divertido e que acredita na possibilidade de fazer filmes de acção sem chamar o público de burro. Talvez o aspecto mais interessante do filme é quando os bastardos encontram um soldado alemão, jovem e assustado, tão distante do estereótipo nazi quanto é possível – uma visão humanizada do adversário que pode, deveras, ser vista como um predecessor para alguns dos retratos feitos no mais recente filme de Tarantino.



Existem 2 comentários

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  1. PEREIRA

    Castellari é efectivamente um homem de acção, os seus spaghetti sempre o demonstraram. Infelizmente não considero as suas incursões pelos ambientes de guerra tão válidas como as coisas que filmou nos seus primeiros filmes (spaghettis).

    Como ávido fan de spaghetti recomendo a visualização não só do aqui referido "Keoma", mas também de "Ammazzali tutti e torna solo" ou "Vado… l'ammazzo e torno". Não esquecendo claro a fusão spaghetti com Shakespeare editada sob "Quella sporca storia nel west"!

    Aproveito para deixar aqui o link do meu blogue, em que me debruço sobre estes temas:

    http://por-um-punhado-de-euros.blogspot.com/


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