Ivo Canelas | Entrevista
O ator Ivo Canelas regressa uma vez mais ao estúdio da Time Out no Mercado da Ribeira para mais uma temporada do espetáculo Todas As Coisas Maravilhosas, a partir do texto de Duncan Macmillan, e a Rua de Baixo teve a oportunidade de estar à conversa com ele e de descobrir quais são para si as coisas mais maravilhosas.
Depois de 3 temporadas esgotadas, mais de 100 apresentações por todo o país e ainda com outros projetos pelo meio, o que é que o faz regressar “às coisas maravilhosas” do Duncan Macmillan?
Ivo Canelas: Pois, esta é provavelmente a quarta temporada ao longo de três anos. Sabes que eu fiz este espetáculo ao longo da pandemia e isso levou a que tivéssemos menos público e muitas máscaras. E confesso que as máscaras foram um desafio para mim, era menos gratificante e isso também me fez querer acabar como começamos: sem máscaras e com a sala cheia. Foi quase um desejo egoísta de fazer um full circle. E depois, como eu fiz temporadas curtas, continua a haver muito interesse, as pessoas continuam a pedir para continuar tanto, que já estamos praticamente esgotados.
E será que é mesmo a última temporada?
IC: Sim. Eu acho que é melhor sair antes que a minha energia fique saturada. O que eu gostaria era de ver se encontramos alternativas agora, se conseguimos aumentar as datas. Mas é como diz o outro “desta água não beberei”, porque a única certa é a morte e os impostos.
E como é que descobriu este texto?
IC: Foi um convite do Hugo Nóbrega, produtor da H2N que viu o texto no Fringe Festival e perguntou-me se eu estaria interessado em fazê-lo. É um texto que já foi feito em bastantes pontos do mundo pela sua característica de que, ao ser adaptado, o autor propõe que se adapte à realidade de cada país, tanto cultural como social, e isso faz com que se torne muito de todos os sítios onde é representado.
E como é que foi esse processo de adaptação para português, em Portugal? O que é se perdeu e ganhou, uma vez que uma tradução é sempre uma nova versão?
IC: Claro! Foi incrível. Eu trabalhei com a Margarida Vale Gato que é uma amiga minha, tradutora e poetisa. Tentamos respeitar ao máximo a aparente simplicidade do texto e de encontrarmos os equivalentes culturais portugueses. Portanto, acredito que não se tenha perdido nada, no sentido em que tudo se transformou. Até acho que ganhamos coisas que não sei se estariam nas propostas de encenação originais que eu vi. Por exemplo, o espetáculo original que era feito em Inglaterra tinha uma hora, nós temos uma hora e quarenta e cinco minutos. Eles foram mais teatrais e nós fomos para uma zona mais psicológica, em que se confunde a realidade e o espetáculo e, qual é a realidade do ator que está a apresentar o espetáculo.
E o que é que na sua opinião faz deste espetáculo o sucesso que tem sido?
IC: Eu acho que o tema é altamente pertinente: depressão e suicídio. Isto é a história de um miúdo que escreve uma lista de coisas maravilhosas para tentar convencer a mãe de que há razões para viver a seguir à sua primeira tentativa de suicídio. Ele começa a escrever aos sete anos e continua a escrever a vida inteira falando sobre o que acontece a esse miúdo, que somos nós todos, o que é que acontece à lista e a essa família. E portanto, surge uma proposta de pensarmos em conjunto sobre o que são estes temas tão transversais à sociedade como a depressão e também o suicídio, que eu temia que ainda houvesse pudor em falar sobre o assunto. Mas acabei por encontrar um público muito disponível e interessado, nem só em ouvir falar como em partilhar experiências pessoais que lhe são muito mais próximas do que eu imaginaria. A pandemia acentuou a vontade de querermos estar juntos no teatro. Se antes às sete da tarde dizíamos “não me apetece sair de casa” agora é “bora lá sair de casa porque podemos!”. Ganhamos uma maior noção sobre a forma como queremos pensar a vida e como é que a estamos a viver. Acho que é daqui que vem o sucesso deste espetáculo. É um texto que comunica a um nível muito profundo, ao qual as pessoas se têm mostrado muito atentas e generosas. E portanto, o público é também parte deste sucesso.
E disponível também, porque há muita interação com o público?
IC: Há alguma interação. Eu não gosto de assustar as pessoas dizendo que há muita interação. O que há é, sem revelar, uma estrutura que faz com que toda a gente fique profundamente atenta por não saber exatamente o que é que será requisitado deles. E é uma atenção muito curiosa.
Mudou alguma coisa na sua perspetiva depois destes quatro anos, depois de tantas apresentações e tendo em conta o feedback que foi recebendo?
IC: Acho que se comprova aquilo que nós todos sabemos e que nos esquecemos com muita facilidade que é – estamos todos no mesmo barco. O barco é frágil, uns estão mais bem seguros do que outros devido a contextos sociais, culturais, circunstanciais, mas estamos todos no mesmo barco. E estamos todos a tentar como sabemos com uns dias melhores, outros piores, para sobrevivermos e com sorte sermos feliz. Mas não é linear, a vida nem sempre é como queremos e ao assumirmos essa fragilidade conseguimos ser mais empáticos uns com os outros e consequentemente connosco mesmos. Há uma coisa muito clara e de que nos esquecemos que é a noção de que nós somos os outros. Ontem estava a ver um vídeo de Alok, defensor de genderfluid e transexualidade, com um discurso que achei incrível e revelador de uma coragem de vida diária. Quem me dera a mim ter metade daquela capacidade de argumentar. Há uma frase lindíssima que diz “o céu não é uma promessa, o céu é uma prática” no sentido em que não é algo que esperemos atingir, mas antes algo que se pratica através de ações e Alok fala muito nisso, numa maneira de estar, num exercício. Quando reconhecemos que nós somos os outros a empatia torna-se muito mais fácil.
Se tivesse de selecionar cinco coisas da sua lista de Todas As Coisas Maravilhosas quais é que não podiam falar? Imagino que já lhe tenham feito esta pergunta várias vezes.
IC: Fixe! Ah… a minha cabeça está sempre em mudança. Fizeram-me essa pergunta um dia destes e fui apanhado desprevenido, mas já a consigo sintetizar melhor. Conversar. Não necessariamente por esta ordem. Mas o ato de conversar, especialmente o saber ouvir com a capacidade de poder mudar o pensamento, de poder dizer “enganei-me”. Acho que é uma capacidade extraordinária especialmente em figuras públicas e na política, o que é muito raro. Às vezes o ato da coerência é assumir a incoerência. A empatia, acho que é essencial! É também uma coisa maravilhosa. Depois cliché mais cliché, que é a saúde – nascemos, crescemos e pensamos que há dias complicados, mas só pode piorar com a saúde a desaparecer. Rir, rir é das coisas mais extraordinárias que existe. E fazer os outros rir também.
Gostava de apresentar este texto em inglês? Para turistas ou mesmo noutro país?
IC: Ah que giro! Nós consideramos isso, mas o que eu acho que este espetáculo tem de forte é a sua questão local. Adoraria fazer em inglês porque gosto muito da língua inglesa, mas teria que ser num país anglo-saxónico em que eu, Ivo Canelas, que morou em Nova Iorque apresentaria esta experiência para nova-iorquinos. No sentido turístico da coisa acho que perde o impacto, não acredito que conseguisse uma noção de universalidade que tocasse todas estas circunstâncias. O que é interessante na adaptação é que de repente isto é completamente português. Portanto, penso que não.
Agora que já está bem familiarizado com este texto do Duncan Macmillan, haveria interesse em trabalhar com outros textos dele?
IC: Vi agora o Pulmão, que é um texto lindíssimo. Mas assim de repente penso que não, apesar de achar que ele tem uma característica muito bonita e muito teatral: ele em meia página consegue fazer-te sentir o tempo a passar – nasci, fui pra escola, apaixonei-me, casei-me, divorciei-me e morri – e sente-se mesmo a ansiedade do tempo que já passou. Passou. A teatralidade tem esse impacto, o de mostrar a velocidade real da vida. E eu adoro textos com coloquialidade em que a procura das palavras, a hesitação e a sujidade do próprio texto seja um dos formatos.
E que projetos é que se seguem a esta reposição?
IC: Tenho a rodar na HBO a série Causa Própria. Na Opto da SIC a série Santiago. Vai estrear na RTP uma série chamada Emília, da Filipa Amaro, com a Beatriz Maia que é uma atriz incrível. Está uma curta-metragem muito gira a rodar, de um realizador chamado Ary Zara. Foi dos projetos em que mais gostei de me envolver no ano passado, fiquei muito surpreendido e foi daí que eu descobri o Alok. Houve uma série de universos que se abriram para mim graças a essa experiência e à generosidade do Ary e da Gaia Medeiros com quem eu amei trabalhar!! E há um projeto que agora ficou com as datas baralhadas, do Ivo Ferreira, que se espera que ainda vá acontecer para o ano. E tenho um projeto de voz e piano com um pianista formidável que é o João Vasco, chamado Sinédoque, que fomos estrear à Tunísia para alunos de português. Aparentemente convencional, mas ele aceitou a liberdade de tornar aquilo um pouco mais Rock’n Roll e punk. Então comecei a fazer experiências com os pedais e com os vocoders e wooo! ‘Tou maluco com aquilo! Gosto muito desse lado da performance musical. A minha fantasia antes de ser ator e depois de querer ser astronauta era ser músico e cantor. Mas, muito honestamente, é também o lado rock’n rol dessa vida. A Adelaide João, que é uma atriz que infelizmente já morreu, com quem trabalhei e por quem tenho muito carinho, era muito intensa e uma vez perguntou-me uma coisa que me marcou muito “sabes porque é que o meu teatro é como é? Porque uma vez fui ver um concerto de David Bowie e decidi que queria fazer teatro como o David Bowie dá concertos”. E de facto a performance musical tem esse poder. E pronto, esse projeto também está a rodar, ainda não estreamos em Portugal e, acho que não me estou a esquecer de nada.
E esta foi a primeira vez que encenou?
IC: Foi. É quase uma não-encenação porque há muito espaço para o improviso. É mais sobre uma disponibilidade emocional do que sobre “fui eu que fiz isto”. É mais sobre estarmos a construir uma coisa – eu e o público – todos os dias. Há um entendimento, há um estudo e depois há uma abertura para falar sobre estes temas.
Mas há interesse em ter projetos pessoais em encenação ou produção?
IC: Sem dúvida! É um lado que não conheço bem em mim, mas eu tenho a sorte de me interessar por montes de coisas e depois o problema é focar-me. Aqui, de repente, surgiu-me o interesse de fazer stand up. Essa coisa de fazer teatro sem quarta parede e falar diretamente para as pessoas. Outra coisa que gostava de fazer era rádio.
Um podcast?
IC: Pois, um podcast. É isso, se calhar! Eu gosto muito do lado de estação AM. Começa a procurar e de vez em quando, mais fora da grande cidade, vais encontrar estações de rádio amadoras, de comunicações de camionistas. Eu sempre que vou para o Porto vou saltando de estação em estação, cada uma com uma coisa mais específica do que a outra – Adoro!
Ocorreu-me agora uma última questão – Se tivesse que fazer um remake ou sequela de algum projeto em que participou qual é que seria?
IC: Nenhum! Eu compreendo o impacto nostálgico. O Fura-Vidas teve um impacto desse género. As pessoas lembram-se de quando eram miúdos eles próprios e o impacto que aquilo teve. Eu tenho sempre a sensação de que quando voltas a um sítio desses a probabilidade de desiludir é grande porque há uma mistificação de quem lá esteve e viveu aquilo e de sentir que já não é a mesma coisa. E não é. Já fomos felizes ali e se calhar é melhor deixar a memória ali quietinha e não ir lá estragá-la.
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