Rescaldo de um fim-de-semana no Musicbox Lisboa
Os primeiros três dias do Jameson Urban Routes 2011.
Dia 20
Na primeira noite do Jameson Urban Routes, a da borla, casa cheia. Em tempos de crise, o povo sai à rua, aproveitando enquanto ainda não lhe cobram a vontade de sair de casa.
Quando nos referimos a espectáculos ao vivo, os Grasspoppers são o projecto de uma só vida. No Jameson Urban Routes, o primeiro e o último concerto da banda que junta elementos dos Cacique 97, Cool Hipnoise, Philarmonic Weed, Faith Gospel Choir, Kussondulola, Mercado Negro, entre outros. Quando sobem a palco são 13 (!) – nunca nos passou pela cabeça ver tanta gente em cima do palco do Musicbox – mas, na verdade, ainda são mais. O núcleo duro (bateria, baixo, teclas, guitarra, saxofone, trombone, trompete e percussão) mantém-se, mas as vozes vão entrando e saindo. Alguns estão em palco só por estar, abanam-se e sorriem, deixando bem vincada a postura descontraída do projecto.
Foram apresentados dois discos, os dois disponíveis online, para audição e download gratuito. O primeiro, “Dub Inna Week”, é um disco dub, cheio de efeitos, delays, etc – bem-disposto e com algumas passagens spoken-word. O segundo, “Lovers Rock Inna Week”, é uma homenagem aos românticos do reggae, românticos como Gregory Isaacs e Dennis Brown. Como é habitual neste tipo de sonoridade, houve aquilo a que a que se convencionou chamar de boa onda, num concerto que foi enchendo à medida que foi avançando no tempo. Não regressaram para encore, seria pouco prático se o fizessem. Mais: Não achávamos possível ouvir falar de Arcade Fire num concerto de reggae, mas ouvimos – provavelmente a referência estaria relacionada com o número de músicos que vemos ao mesmo tempo em palco.
O festival, o Jameson Urban Routes, para além de cá trazer os artistas que dificilmente veríamos em Portugal noutras condições, esforça-se ainda por dar espectáculos que, em condições normais, não veremos em mais lado nenhum. Se os Grasspoppers referem que este foi o seu primeiro e último concerto, os Beatbombers (Stereossauro mais DJ Ride) fazem-se acompanhar de um convidado especial, o saxofonista Rodrigo Amado. Os Beatbombers, por um lado Stereossauro, homem dos botões que gosta de descontruir a tradição e revesti-la com linguagens urbanas, do outro DJ Ride, agora residente mensal nesta mesma sala e um dos mais reputados DJs nacionais, mestre do scratch e do turntablism, homem do século XXI, o tal das linguagens urbanas.
A actuação começa com Ride a pedir desculpas pelo atraso, “fazer a transição nem sempre é fácil”, mas promete: “vamos começar calminhos e acabar com os BPMs em cima”. E assim foi, tudo acompanhado pelas espectaculares projecções e o saxofone de Rodrigo Amado que aparece e desaparece sem critério aparente. Resumindo, nesta actuação, o que Stereossauro e DJ Ride fizeram foi trazer o jazz para o século XXI.
Dia 21
E à segunda noite, as atenções centram-se no ritmo. Primeiro os Dear Telephone com um rock aventureiro que vem de Braga e que tanto nos leva a momentos de euforia, como a outros mais melancólicos. Há uma enorme preponderância da bateria e há canções que, nas cordas, contam só com o baixo. Há um EP, editado em Março, e “quase todas as canções são desse EP”, diz o guitarrista/baixista André Simão. Em momentos mais nervosos trazem-nos os Kills à memória, nos mais introspectivos lembram-nos os Low. São gente com cultura literária e cinematográfica acentuada, o próprio nome do projecto é uma referência a uma curta de Peter Greenaway. Trouxeram alguns apontamentos jazz e quotaram-se como a banda do concerto menos eufórico do fim-de-semana, sem que isso seja necessariamente mau.
Dos Sun Airway diz-se que fazem parte daquele grupo de projectos de quarto, projectos como Toro Y Moi, Washed Out, entre outros, muitos outros, conjunto de projectos a que se convencionou chamar de chillwave ou glo-fi. A diferença é que os Sun Airway não gravaram num quarto, mas sim numa cave, como qualquer banda de garagem que se preze. Talvez venha daí a atitude indie-rock do duo que em palco transforma-se num trio – baixo, teclas e bateria, muito ritmo, pois então. É, mais que um concerto, uma experiência audiovisual. Temos projecções psicadélicas a trazerem-nos à memória os Animal Collective, mas, na maior parte do tempo, temos imagens que poderiam ser de uma qualquer curta cinematográfica. Podemos fechar os olhos e criar as nossas próprias passagens, ou podemos acompanhar as imagens, voar sobre as nuvens, andar na praia, vaguear de bicicleta, sair num dia chuvoso. A parte da música assegura boas doses synth-pop, coros eufóricos, muita dança e muito suor – chega-nos a lembrar os Cut Copy e, consequentemente, os New Order. Os Sun Airway constroem uma ponte que vai da pop dos anos 80 ao que hoje é chamado de indie dos 00. Quase no fim olhamos para um jovem que nos parece dizer com apenas um olhar “larga os apontamentos e vem é dançar!”. Problema: a curta actuação acabou mesmo ali.
Dia 22
Se no primeiro dia tivemos actuações de projectos que poderemos não voltar a ver com os mesmos moldes e no segundo uma forte incidência no ritmo, o terceiro dia foi dedicado ao peso.
Primeiro os Throes + The Shine, numa actuação frenética que já é, como prevíamos, a surpresa do festival. Uma boa ideia não é uma boa ideia até que alguém pegue nela e faça qualquer coisa. Os Throes + The Shine são essa boa ideia. Nem precisam inventar muito – é o rock reduzido à sua essência, com riffs básicos, mas poderosos. Provavelmente tudo isto seria impensável se os Buraka Som Sistema não tivessem surgido há cinco anos fundindo o kuduro angolano com linguagens mais electrónicas. As canções soam punk tal é a violência com que as palavras são cuspidas pelos Shine. E no entanto as palavras de ordem são “hoje é festa!” e “Lisboa dança bué!” ou perguntas como “Está a cuiar?”. Nas filas da frente, vários convertidos participam na festa de forma activa. Mais atrás, nota-se um ar de surpresa em algumas caras relativamente ao que se está a passar em palco. Enquanto os Throes são responsáveis pela secção instrumental, pelo esqueleto do projecto, os Shine dão-lhe uma voz, incitam a multidão, dão-lhe vida. “Estes gajos já me pagaram o bilhete”, ouvimos depois do concerto.
“Olá, nós somos os Health de Los Angeles”, foi assim que o quarteto se apresentou. No resto daquilo que foi uma muito intensa actuação não voltariam a dirigir-se ao público de um Musicbox cheio para ver a banda de “Get Colour”, ao vivo e a cores. Não há texto que não refira os My Bloody Valentine, mas os Health vão mais além, vão ao noise e ao shoegaze, sim, mas a sua identidade cria-se na forma violenta como tratam os instrumentos e enchem no público (sim, falamos de pancada, de porrada da grossa). Guitarras super distorcidas, sons vocais dignos de um filme gore, isto é mais violento que um concerto de death metal. Assim são os Health, tipos nada mansinhos, uns brutamontes insensíveis que nos massacram os ouvidos, qual milagrosa terapia sonora. O público que não precisa de ser convertido e que está no Musicbox só para os ver adere em massa – mosh, crowdsurf e headbanging são manifestações de apresso. John Famiglietti, o baixista, é a cara do grupo, o homem que chama a si todas as atenções – ascendência oriental, altíssimo, cabelo longo e pele branca, muito branca. É ele quem conduz a banda para toda aquela intensidade, é ele que nos garante toda uma ideia de caos durante todo o espectáculo – o crowdsurfing no final do concerto é apenas um exemplo. Como uma coisa com tanta intensidade não pode demorar muito tempo, a actuação termina ao fim de 45 minutos, o suficiente para termos a certeza que estivemos perante aquele que é o concerto do ano. OK, malta céptica. Aguardemos mais dois meses.
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