Jazz em Agosto @ Gulbenkian
Rui Neves, em discurso directo.
A Fundação Calouste Gulbenkian acarinha este ano mais uma edição do Jazz em Agosto. O evento aposta desde há mais de duas décadas e meia em artistas de vanguarda que exploram a linhagem, com suas sub-linhagens, jazz na sua contemporaneidade.
Dando azo à já conhecida premissa de que existe uma distinção entre o jazz norte-americano e o europeu, Rui Neves – director artístico – explicou um pouco melhor o modo como é entendido e recebido o jazz europeu no resto do planeta, o que por cá se faz, as expectativas em torno de mais uma edição, o género nas suas extensões (free jazz, jazz rock, acid jazz) como sintoma de liberdade absoluta e , entre outros assuntos, o tipo de público que vem aderindo, desde 1984, a esta reunião de criativos.
É num modo peremptório que Rui Neves assevera os principais desejos/expectativas para o encontro deste ano na Gulbenkian: “existem as expectativas naturais de que todo o processo de produção executiva decorra na normalidade e as expectativas decorrentes dos efeitos de cada concerto. Para o público é evidente que as expectativas se centram nos próprios concertos e eles serão dignos desse merecimento na medida em que a oferta agrupa projectos e músicos de relevo nos caminhos actuais do jazz. Cito as assim consideradas cabeças de cartaz e que se apresentam no anfiteatro ao ar livre da Fundação Calouste Gulbenkian: o duo John Surman/Jack DeJohnette, um concerto raro deste duo cultivado (6 Agosto); o Electro-Acoustic Ensemble do saxofonista Evan Parker na sua maior formação de sempre, 18 músicos, estabelecendo uma dicotomia entre electrónico e acústico e incluindo projecção de imagem em tempo real (8 Agosto); o novo projecto do clarinetista francês Louis Sclavis, Lost on the Way, inspirado na Odisseia de Homero e, em particular, nas viagens de Ulisses, revelando uma nova geração do jazz francês (13 Agosto); a Circulasione Totale Orchestra do saxofonista norueguês Fröde Gjerstad que encerra o festival, um ensemble multigeracional, multidimensional, multinacional e, também, explorando acústica e electrónica (15 Agosto). No entanto, os restantes concertos da edição deste ano, são igualmente recomendáveis pois a nossa linha de programação não contém uma segunda linha para encher, significando apenas um ajustamento de dimensionamentos, casos dos concertos no Auditório 2 da FCG ao fim da tarde que pelo seu intimismo se destinam a menos público”, refere.
Para este Director Artístico, de já considerável experiência no meio, a fidelização dum determinado público é um ponto chave, “existe de facto uma fidelização que foi construída ao longo de duas décadas e meia conduzindo a uma estabilidade, mas não poderemos falar de um crescimento notório tal como num plano económico no qual, para um determinado investimento, corresponderá um crescimento previsto, lutando-se apenas para tal. Em termos de público regular do Jazz em Agosto temos cumprido uma boa ocupação dos espaços disponíveis, o anfiteatro ao ar livre com 900 lugares e o auditório 2 com 300 lugares, fazendo com que alcancemos um total de perto de cinco mil pessoas que assistem aos nossos concertos, alguns dos quais esgotam. Não é o jazz contemporâneo inovador uma expressão de massas, mas, apesar disso, conseguimos suscitar curiosidade bastante e, mais importante, a vontade de regressar. O nosso público é classe média e superior, dos 30 aos 50/60 anos, profissões liberais, artistas, estudantes e, também, em número significativo, um público internacional que é turista em Lisboa em Agosto, habituado, por certo, a frequentar concertos do mesmo tipo nos seus países de origem. O nosso público sabe ao que vem, curioso e aberto, tanto mais que a nossa informação prévia é bastante completa no nosso site, por exemplo, emitindo podcasts específicos sobre cada concerto”, elucida.
Já na 27ª edição, o Festival tem acelerado um significativo intercâmbio cultural de expressão artística que Rui Neves sente revelador de alguma autonomia e unicidade, do seguinte modo: “atravessámos três décadas e o objectivo tem sido apresentar figuras importantes do jazz contemporâneo inovador que fazem parte da sua História, mesmo sustentando polémicas. Nas últimas edições temos estabelecido anualmente um conceito que permita compreender melhor a sequência da programação e o seu âmago: o deste ano explora o intercâmbio que sempre houve entre o Jazz Norte-Americano original e o Jazz Europeu que começou por copiá-lo mas que foi adquirindo autonomia estética. Aliás, para quem tenha seguido as programações do festival elas têm sempre mantido este tipo de paridade, mas, este ano, quisemos dar-lhe ênfase. O Jazz em Agosto, por ser uma iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian, é um festival único em Portugal, incidindo na Música de Arte e não tomando em atenção artistas famosos de moda”.
Há questões recorrentes, mas que inevitavelmente se impuseram nesta conversa: Jazz norte-americano original, jazz europeu dialogante ou a união de ambos? Rui Neves explicita na sua minucia – de expert nestas rítmicas andantes. “Será necessário fazer um pouco de história: desde o princípio do jazz que os seus músicos mais famosos escolheram a Europa para trabalhar e estacionar, casos de Sidney Bechet e Louis Armstrong, no princípio do séc. XX. Isto porque a Europa sempre soube tratar melhor os artistas. Ao longo do séc. XX, outros músicos de jazz inovadores procuraram a Europa pelas mesmas razões: caso de Ben Webster que viveu em Amsterdão nos anos 1950, de George Russell e Don Cherry que viveram na Escandinávia nos anos 1960 ou Dexter Gordon e Albert Ayler que se radicaram na Dinamarca na mesma época. Este movimento fez com que muitos genes se incorporassem numa geração de músicos europeus em presença criando uma autonomia. Assim, hoje, até podemos ouvir músicos norte-americanos que soam como europeus e vice-versa, ou seja, em tempos de fragmentação e fractalização do jazz, que é a sua própria evolução, tudo se torna possível, até a inclusão de laptops…”
“O resto do mundo”, no caso do jazz contemporâneo inovador, é muito limitado na aceitação do jazz europeu. Para Rui, “no fundo, o jazz mais evoluído existe apenas no Hemisfério Norte e, mesmo assim, só a Ocidente e o Japão será a única excepção. Em Portugal, fruto da explosão do ensino do jazz, têm surgido músicos aptos tecnicamente mas ainda regidos pelo cânone, poucos se aventuram para fora dele, na verdade. Um grupo como o Red Trio que se apresenta no Jazz em Agosto deste ano, é excepção”, considera.
A pedido para os leitores RDB, Rui Neves deixou uma mensagem que resume a complexidade e gosto pelo estilo em si mesmo: “que aprofundem o seu conhecimento do jazz que não é só um, porque, na verdade, existem muitos jazzes que se encontram à nossa disposição”.
Assim espero que o façam espreitando mais esta edição de 2010.
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