João Hasselberg @ Centro de Artes de Ovar (30-10-2015)
Sair de um concerto com a alma cheia e um sorriso parvo e irreprimível que teimava em não desaparecer
Chamar trabalho a este texto que aqui reproduzo será claramente um excesso. Quando fazemos o que gostamos e no processo nos cruzamos com a verdadeira Arte, passamos automaticamente à classe dos afortunados.
Depois do concerto de João Hasselberg e sua banda no Centro de Artes de Ovar, no âmbito do OuTonalidades, com a alma cheia e um sorriso parvo e irreprimível que teimava em não desaparecer, tomei consciência dessa inadvertida promoção.
Desde já faço a minha declaração de interesses: sou fã incondicional deste grande contrabaixista e dos músicos que o acompanham, desde o seu álbum de estreia “Whatever It Is You’re Seeking, Won’t Come In The Form You’re Expecting” (Sintoma Records, 2013), que podem descarregar legalmente aqui ou adquirir aqui.
Álbum declaradamente conceptual, a sua ideia unificadora é recriar musicalmente clássicos da literatura do século passado. Desde o título do álbum (uma citação de “Kafka à Beira Mar” do eterno candidato ao Nobel Haruki Murakami), à 11ª faixa, que evoca o apaixonado e trágico Camilo Castelo Branco, no seu “Amor de Perdição”, passamos por Truman Capote, Carson McCullers ou Jack Kerouac.
À primeira audição, o seu jazz soou-me simultaneamente fresco e reminiscente dos clássicos que elevaram este estilo à singularidade e qualidade que hoje o rodeiam. Reminiscente dos clássicos, pela sua aparente simplicidade estrutural e natural melodia, quase sempre trauteável ou “assobiável”, remete-nos aos tempos idos em que o Jazz fazia as vezes do hip hop em todas as bandas sonoras. Grandes sucessos ainda hoje, como «As Time Goes By» ou «Moon River», foram essenciais para perpetuar, na memória colectiva de sucessivas gerações, os filmes de que eram parte (respectivamente “Casablanca – 1941 – e “Breakfast at Tiffany ́s” – 1961).
Fresco, porque distinto e original no panorama nacional e europeu, onde facilmente o improviso jazzístico se identifica pela abordagem focada predominantemente na formalidade (mais intrincada e técnica) e desapego do formato mais “canção”, onde o ouvido comum, mais viciado pelo pop/rock, identifica a tradicional estrutura de letra/refrão/letra.
Ao mesmo tempo, por mais contraditório que possa parecer, essa frescura provém também de uma ambiência muito peculiar, arrisco cinemática e romanesca (se me é permitido este salto quântico entre a sagrada vaca literária e a tão comezinha e popular música), como se a melodia fosse a banda sonora de um filme que inadvertidamente, mesmo de olhos abertos, nos atrevemos a sonhar. Ou talvez do(s) filme(s) da nossa vida.
À hora marcada, num ambiente acolhedor com poucas dezenas de espectadores, feito de sombras e luz ténue, em pleno palco do belo Centro de Artes de Ovar, o concerto começou tranquilo.
A voz de Joana Espadinha surge no palco timidamente, como um feixe de cor, com a abertura do novo álbum “Truth Has To Be Given in Riddles” (2014), encadeada com «Perry Smith ́s Dreams», que pede emprestada parte da melodia de «In Cold Blood», ligando-nos já ao final inesquecível do concerto. Mas lá chegaremos.
Aqui Diogo Duque destaca-se naturalmente pela facilidade com que o fraseado como que desliza do trompete, com um controlo perfeito das intensidades e das dinâmicas do tema e um extremo bom gosto nas notas escolhidas.
Para elevar as almas, seguiu-se uma das mais belas melodias do repertório do contrabaixista, baseada na inesquecível história homónima de Hemingway “The Old Man and the Sea”. O piano de Luís Figueiredo toma o seu tempo na descrição da viagem do determinado e incansável Santiago, com Hasselberg no seu encalço e a bateria do histórico Bruno Pedroso (conhecido por muitos como Bruno Poderoso, pela sua já mítica perícia e poder nas baquetas), tornada mar revolto mas contido.
Depois de nova passagem pelo álbum mais recente, o colectivo estreou as novas «Kenji In Bruma» e «Mishima ́s Sword», com direito ao primeiro solo de Bruno “Poderoso” e com o colectivo a espraiar-se pela primeira vez numa improvisação mais coesa.
Joana Espadinha regressa ao palco para os momentos mais pop do concerto, que qualquer rádio passaria com sucesso em todos os horários, uma da sua autoria e a seguinte escrita por Luísa Sobral, ambas interpretadas com a mestria e afinação a que já nos habituou.
Seguiu-se a homenagem sentida a um dos mentores espirituais de Hasselberg, falecido há pouco mais de um ano, depois de uma longa e histórica carreira com todos os maiores vultos do Jazz; Charlie Haden ficaria comovido, como nós ficamos, com a tocante elegia musical que se seguiu. Hasselberg retirou-se respeitosamente e ao trompete certeiro de Diogo Duque juntou-se a voz angelical de Espadinha, vogando entre harmonias e uníssonos, piano e bateria em fundo. Uma maravilha. Infelizmente, o final aproximava-se a largas passadas.
A homenagem (voluntária ou não) a New Orleans de «En Madrid», em que a banda se transfigura em marching band, ficou-me na memória pelo solo da noite, a cargo do portentoso Ricardo Toscano, pleno de risco e rivalizando em poder com o experiente Pedroso. O público, mais velho e talvez cansado de tanto emoção, nem se apercebeu do que tinha acabado de presenciar. Eu digo sem pejo: o futuro do jazz português. E depois quiçá…
Para o final, regressamos à imbatível combinação guitarra/voz. À singeleza da voz de Espadinha, junta-se a guitarra de João Firmino e o discreto baixo de Hasselberg para juntos evocarem o fantasma de Steinbeck em «To a God Unknown». Lá para o meio da canção, assoma novo solo do brilhante Duque, assertivo e temerário como sempre, com a clarividência dos talentosos. Os aplausos não cessaram, como seria expectável.
O derradeiro regresso trouxe um brinde de seu nome «In Cold Blood». Com todos os músicos em palco, Toscano e Figueiredo dão o mote, seguidos de perto pela irrequieta bateria de Pedroso. Duque segue-lhes o rasto e solta o fôlego sobre a melodia do saxofone. E isto era só a introdução.
Segue-se o mantra urdido com arte pela guitarra do talentoso João Firmino (com um belo álbum em nome próprio entitulado “A Casa da Árvore” (Sintoma Records, 2013), que podem descarregar legalmente aqui), que estende generosamente o tapete onde Diogo Duque passeia graciosamente, na companhia do gigante Bruno Pedroso, supervisionados pelo sempre presente Hasselberg, qual farol guia (sim, ele é enorme).
Numa nota pessoal (mas aqui inevitável), confesso que “Whatever It Is…” foi seguramente o álbum que mais escutei (mais do que ouvi, porque a cada nova escuta lhe descobria novos cambiantes) no último ano.
Tenho a estranha teoria de que quando encontramos na Arte o inesperado e mágico conforto do reflexo (tantas vezes inconsciente) de emoções e pensamentos pessoais, ela cumpre o seu papel, de ligação ao todo que identifica a nossa Humanidade, nos complementa e eleva a um estádio de bem-estar, maturidade intelectual e até sentimental que na nossa tão pós-moderna solidão, certamente nunca atingiríamos. Este álbum foi um daqueles a que recorri para me relembrar do que ainda faz a diferença, naquelas alturas em que tudo parece relativamente cinzento e indistinto.
O concerto de Ovar acrescentou-lhe a magia da música tocada no momento, ouvida in loco com a sua imediatez e risco, a energia que trespassa cada improviso e cada nota inesperada que se junta à familiaridade do registo de estúdio.
Quando os músicos excedem as nossas expectativas e criam diante de nós, com a generosidade que só o talento permite, o momento é de celebração. Celebremos, pois.
Obrigado Hasselberg.
Alinhamento
• «Opening»
• «Perry Smith ́s Dreams»
• «The Old Man and the Sea»
• «Abraham ́s Doubt»
• «Kenji in Burma»
• «Mishima ́s Sword»
• «Two Brothers in a Treasure Hunt»
• «Ballad of Sad Café»
• «For Charlie»
• «Madrid»
• «To a God Unknown»
Encore
• «In Cold Blood (Intro)»
• «In Cold Blood»
Fotografia de Vera Marmelo
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