Joel Dicker – Entrevista
«Assumo a literatura como um exercício de interpretação que leva o leitor a refletir o livro enquanto um todo»
Mestre num género que mistura o ambiente policial com o thriller, e um dos autores mais bem-sucedidos da sua geração, Joel Dicker lançou recentemente O Enigma do Quarto 622, um livro que coloca, literalmente, do lado do leitor a possibilidade de refletir a narrativa e os personagens. Em entrevista ao Rua de Baixo, o escritor suíço falou da edificação deste seu mais recente livro, do desafio da própria escrita e de todo esse processo criativo, e apontou ao futuro.
Habitualmente os seus livros têm os Estados Unidos da América como cenário. O que fez com que optasse por rumar à Suíça, ao seu país natal, em O Enigma do Quarto 622?
A decisão foi simples: além de ser suíço, vivo em Genebra, e, desde há muito tempo, que queria escrever um livro cujo enredo tivesse o foco na minha terra natal. Nos outros livros, cuja narrativa era passada por terras norte-americanas, conseguia um distanciamento entre mim, escritor, e a própria história, mas sentia um profundo desafio de tentar fazer algo novo, criar uma ficção com a minha realidade.
Outras das novidades foi ter um personagem com o seu nome. Quem é, afinal, o Joel Dicker deste livro?
Sinceramente, e parecendo paradoxal, o Joel desde livro não sou bem eu, mas sim um personagem-espelho da minha pessoa enquanto autor e cujo reflexo é a narrativa. E esse é também um desafio que coloco a quem está a ler este livro, saber quem é de facto esse personagem, pois ao longo do livro quem tem o poder de ir decifrando a trama, e quem é realmente cada personagem, é o leitor. Esta questão da hipotética identificação de um personagem ao escritor, e vice-versa, já se tinha colocado quando lancei A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert, e, na altura, as pessoas perguntaram se Marcus Goldman era “eu”, e mesmo quando o neguei, assumiram-no como tal. Isso é curioso pois ao batizar o personagem deste livro com o meu nome, o objetivo era passar o já referido desafio ao leitor, levando-o a pensar quem é aquele escritor suíço. E é também por isso que assumo a literatura como um exercício de interpretação que leva o leitor a refletir o livro enquanto um todo.
A presença desse personagem, apesar de discreta, revela um pouco de como se constrói um livro, desde a sua ideia, passando pela influência do editor na própria obra até ao trabalho de investigação. Porque achou pertinente fazê-lo?
Acho importante que o leitor conheça todo o processo da escrita de um livro, pois sou muitas vezes confrontado com essa questão. Se estivermos a falar de, por exemplo, um músico, é interessante saber como, onde e com quem aprendeu a tocar, e desenvolveu o dom. Com um pintor, se frequentou uma escola de arte e quais as suas influências. No caso de um escritor, o processo é diferente pois não existe uma “instituição” que ensine a escrever. Portanto, encarei este livro como uma oportunidade de falar sobre a arte de construir uma história, personagens, uma narrativa.
E já que falamos da importância do editor, abre o livro com uma dedicatória a Bernard de Fallois, seu amigo e editor, falecido em 2018. O que significou poder fazer esta homenagem?
Foi a minha forma de lhe prestar o devido tributo. Devo muito ao Bernard, foi ele que acreditou em mim desde o inicio, que me tornou autor, e é o maior responsável pelo sucesso que tenho tido. Este livro foi especial no sentido de ter sido o primeiro que escrevo depois da sua morte e tinha de vincar o meu agradecimento por tudo o que fez por mim.
Regressando ao livro, verificamos que centra a narrativa no triangulo amoroso entre os três protagonistas, uma relação sublinhada pela traição, mas também pelo amor puro, seja ele correspondido ou não. O amor é (ainda) a melhor das inspirações?
Sim, pois o amor é um sentimento que todos, felizmente, partilhamos, e poder trabalhar com algo que seja assim tão universal é um privilégio. Sinceramente, não gosto de construir personagens que são “apenas” assassinos por serem maníacos, preciso sim dar-lhes mais alma, sentimentos com que os leitores se possam identificar, e, depois sim, juntar ingredientes como laivos de tristeza ou alegria, traços de personalidade. E, depois, o amor, sendo um sentimento tão poderoso, faz-nos cometer as maiores loucuras, até matar.
Paralelamente a esses protagonistas, há personagens secundários extremamente importantes, mesmo decisivos, para o desfecho da história, à semelhança do que fez noutros livros. Sente que esse equilíbrio entre protagonistas e outros personagens é determinante para se contar uma boa história?
O equilíbrio entre protagonistas e personagens secundários é muito importante, mas aquilo que tento é que todos os personagens dos meus livros sejam, à sua maneira, protagonistas. Até porque se alguns são meros elementos decorativos, então não deviam sequer fazer parte do livro. No fundo, acaba por ser quase inevitável fazer essa distinção entre protagonistas e os outros, mas, mesmo um personagem que apenas surja num único capitulo, deve ser considerado importante para a narrativa, podendo mesmo ser um elemento-chave para o desfecho.
Como cresceu o processo de escolha dos personagens?
Em qualquer livro, devemos dar oportunidade aos personagens de crescer. Em alguns casos, conseguimos, noutros nem tanto. Isso tem a ver com a própria sensibilidade do autor e de como a narrativa evolui. Enquanto escritor tenho de estar preparado para deixar os personagens fluir ou assumir que, afinal, não devem ter tanta, ou nenhuma, importância para a história.
À medida que percorremos as páginas deste livro, vamos conhecendo mais pormenores, pequenas peças que se vão encaixando no puzzle global. Quando começou a escrever o livro, já tinha o seu final planeado?
Nunca trabalho com um plano antecipadamente definido, pois gosto que seja a história a surpreender-me, a mostrar uma direção. Neste livro em particular, comecei a escrevê-lo sem saber o seu fim, e fui construindo a narrativa por fases, deixando fluir a imaginação, ainda de que forma o mais coerente possível.
Outras das características de O Enigma do Quarto 622 é um perfil burlesco e “inocente” de alguns personagens e da própria narrativa. Essa também pode ser uma forma de criar empatia entre o livro e o leitor?
Sim, sem dúvida. Mas diria mais, assumo a empatia que refere como decisiva para conseguir a atenção do leitor, levá-lo a passar várias horas agarrado ao livro, aos personagens. Por isso é que os personagens devem de ser muito bem construídos, terem alma, mesmo que essa edificação apaixonada surja a partir de um perfil inocente, burlesco ou maléfico.
O narrador deste livro, Joel escritor, é descrito como refém da criação literária, absorvido pelo seu trabalho, relegando muito da sua vida pessoal em detrimento de ter um bom romance…
O Joel personagem é um refém do seu trabalho, na própria realidade e da narrativa que está a construir e, neste caso, assumo-o totalmente como o que acontece comigo, que este tipo de trabalho implica muita dedicação, sacrifício. Sejamos autor ou leitor, quando estamos agarrados a uma boa história, não a queremos largar antes de chegar ao fim. E é para isso que trabalho, para dar esse prazer ao leitor.
Pelo que sabemos, o lançamento deste livro foi adiado devido à pandemia do novo coronavírus. Como viveu o período de confinamento?
Esta pandemia, que, nunca esquecer, ainda está muito presente, fez-nos perceber que vivemos tempos diferentes, complicados. Na suíça estivemos confinados durante dois meses e isso mexeu com as pessoas, seja em termos pessoais ou profissionais. É um período de grande luta, de ansiedade, e, confesso, que foi muito complicado para mim no início, em que me sentia criativamente bloqueado. Mas, melhores dias virão, e, neste momento já estou a trabalhar num novo projeto.
E o que podemos esperar do sucessor de O Enigma do Quarto 622?
É uma excelente pergunta, para a qual ainda não tenho resposta. Nas últimas semanas, comecei a escrever em algo que se vai transformar num novo livro, mas ainda estou a descobrir o que já tenho em mãos e qual a sua direção. Para mim, é sempre muito importante ter a liberdade para criar, e como assumo esse processo como muito intimo, opto por não partilhar o meu trabalho antes de estar terminado. Mas, assim, que possível, dou novidades.
«O equilíbrio entre protagonistas e personagens secundários é muito importante, mas aquilo que tento é que todos os personagens dos meus livros sejam, à sua maneira, protagonistas»
«Encarei este livro como uma oportunidade de falar sobre a arte de construir uma história, personagens, uma narrativa»
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