José Bandeira

Entrevista a um dos mais activos cartunistas portugueses.

Cartune – é um desenho humorístico acompanhado ou não de legenda, de carácter extremamente crítico, retratando de uma forma bastante sintetizada algo que envolve o dia-a-dia de uma sociedade.

Os cartunes andam na boca do mundo desde o passado dia 30 de Setembro, quando o jornal dinamarquês Jyllands-Posten publicou uma série de doze desenhos que satirizavam o profeta Maomé. Uma onda de protesto levantou-se desde logo, encabeçada pela comunidade muçulmana, que os considerou ofensivos e blasfemos; do outro lado da barricada surgiram as vozes a defender o periódico dinamarquês, usando a liberdade de expressão como arma. A celeuma atingiu níveis internacionais e surgiram confrontos violentos, que resultaram até em mortos. Aproveitamento da situação, extremismo religioso… seja qual for a justificação, o certo é que não passam de desenhos…

O lisboeta José Bandeira é um dos mais importantes cartunistas políticos da nossa praça. A sua carreira iniciou-se em 1983, no Diário de Notícias, ao qual se mantém fiel desde então. Diariamente, podemos ler a coluna Cravo E Ferradura, que já leva dezasseis anos de actividade ininterrupta. Além disso, José Bandeira faz ainda ilustração e banda-desenhada, tendo publicado o livro Namoros, Casamentos E Outros Desencontros, com o qual arrecadou o prémio de Melhor Álbum de Tiras Humorísticas no certame da Amadora, em 2003. A este, juntou outros prémios e algumas exposições no estrangeiro.

A Rua de Baixo esteve à conversa com José Bandeira, da qual resultou uma interessante entrevista.

RDB: Ainda tem os primeiros desenhos que fez?

Decerto que não. Não consigo sequer imaginar que desenhos seriam. Se está a referir-se a cartunes publicados, não tendo o original, recordo-me bem do tema (a memória das coisas pode ser uma forma de as possuir): era uma caricatura de Jaruzelski. Saiu na secção de Internacional do DN no início dos anos oitenta.

Ao longo dos anos, quais têm sido os seus mestres e as suas influências no desenvolvimento do seu traço e do seu estilo?

Mestres, não os tive, pelo menos não no sentido que normalmente se dá a «mestre»: o de professor ou mentor. Se tive influências, e certamente as houve, elas foram tão difusas e numerosas que só a muito custo posso indicar algumas que se destaquem, como Levine, Quino ou Loup.

Claro que fui impressionado por desenhadores fora da área do humor (Pratt ou Bilal vêem-me à lembrança), mas isso não significa que tenham representado uma influência importante naquilo que faço hoje. Mais fortes foram as marcas que me deixaram alguns não-desenhadores: Mark Twain, Woody Allen, Monty Python, Fellini (este último era também caricaturista, mas à época eu não o sabia). Um cartunista é, por definição, um desenhador de humor; ou seja, alguém que faz humor através do desenho; mas esta definição pode ser redutora, já que muitos cartunistas trabalham com texto. Em alguns casos (cada vez mais numerosos – o Guarda Ricardo, Pearls Before Swine, South Park, etc.) o desenho tornou-se mesmo secundário, se não de risco propositadamente ingénuo. Com a diversificação e evolução técnica dos media, as técnicas de humor tendem a fundir-se ainda mais: o Contra-Informação, por exemplo, utiliza as técnicas da caricatura e do teatro de fantoches com linguagem e ritmo especificamente televisivos. O que permite a singularidade do cartune político é a sua já longa tradição e a especificidade do suporte em que é publicado, ou seja, a imprensa.

E os cartunes? Como entrou no mundo dos cartunes?

O interesse pela política era quase inevitável para quem, como eu, passou pela adolescência no fim dos anos setenta. Esse interesse manifestou-se sempre como contraponto aos agentes políticos (em contraste com outros que militaram empenhada e activamente neste ou naquele partido e aí perderam a sua virgindade política). Eu mantinha-me fora da esfera, por assim dizer, e tentava ilustrar o que se passava lá dentro, o que, no fundo, era uma forma de estar em simultâneo dentro e fora, como os homenzinhos que surgem a tomar notas nas ilustrações das esferas celestes medievais. O domínio do humor, a capacidade de desenho e a predisposição para olhar o que nos rodeia com olhos críticos – perceber quando o rei vai nu, digamos assim – constituem os ingredientes necessários para fazer um cartunista político. A imprensa vivia tempos de alguma pujança, mas era, como hoje, pouca; e o primeiro passo – fazer publicar um desenho – era o mais difícil. Conseguido isso, o resto viria naturalmente.

Em 1990 inicia no DN a série diária “Cravo E Ferradura”, que se mantém até hoje. Tem sido fácil alimentar este “filho” ao longo de dezasseis anos?

Depende do nosso conceito de «dificuldade». Talvez o mais árduo seja manter uma produção diária baseada na actualidade (se o não fosse, poder-se-ia «produzir», por exemplo, para uma semana ou para um mês). Em todo o caso, considero-me um privilegiado: faço aquilo que quero de forma completamente livre. Quantos poderão dizer o mesmo?

É muito diferente o cartune político do cartune normal? Existem (ou devem existir) limites?

Os limites existem, muitas vezes difusos e maleáveis, mas existem e sempre existiram. Variam de lugar para lugar, de época para época, até mesmo de hora para hora (por exemplo, num programa matinal de TV e num programa nocturno na mesma estação). É sempre possível criar fronteiras arbitrárias e fazê-las respeitar pela força, mas elas jamais significarão mais que isso mesmo – limites impostos pelo poder. Mais tarde ou mais cedo as pessoas (e as comunidades) têm que aliviar a pressão artificial que sobre elas é exercida. Uma das teorias do humor mais conhecidas fala precisamente de alívio.

O desenho de humor e o cartune político diferem sobretudo na atitude, isto é, na forma como intervêm numa comunidade. O primeiro trata o humor como um fim em si mesmo; no segundo, o humor constitui um meio para atingir um fim. Mesmo quando o cartune político parece isento de mensagem, ele força uma reavaliação de uma situação ou acontecimento ao colocar os seus agentes sob ângulos de observação inusitados.

Pergunto isto, obviamente, devido à polémica que anda na ordem do dia, acerca das caricaturas de Maomé. Como vê essa situação?

Procurei chamar a atenção para o facto de os desenhos (alguns são de facto cartunes, outros não) terem constituído um pretexto puramente circunstancial. Podia ter acontecido com estátuas, pinturas, peças de teatro: o que se procurava era um meio de agitar as massas. Por condenável que fosse a atitude do jornal dinamarquês, a reacção foi manipulada ao extremo e atingiu paroxismos de nonsense. Diga-se que, como borbulhas, os excessos são inevitáveis e até úteis: percebidos como abusos, eles ajudam a nivelar as nossas intervenções na comunidade. Evidentemente, por cá não faltou quem se aproveitasse do ocorrido para tentar limitar a liberdade de expressão, por exemplo erguendo (ou baixando) os assuntos religiosos à muito polinésia categoria de tabu. O ultimamente tão acarinhado bom senso parece ter prevalecido, porém – e o ofício, algo paradoxalmente, saiu reforçado. Por uma vez falou-se intensamente de humor e da sua relação com o sagrado. Não é desta que A Vida de Brian sai das prateleiras.

Já alguma vez ouviu vozes de protesto ou indignação devido a um cartune que tenha publicado?

Acontece, sobretudo de forma indirecta. Na maior parte dos casos trata-se de mal-entendidos (é surpreendente a quantidade de interpretações, algumas absolutamente divergentes, que podem desenvolver-se a partir de uma ideia aparentemente óbvia). O nosso sentido de humor atinge níveis mínimos quando o assunto nos toca directamente. Pode ser a religião, a nacionalidade, o ofício, a forma como penteamos o cabelo, o cão que temos ou não temos, o pronunciarmos os esses à moda desta ou daquela terra. Se nos tocar a nós, é bem possível que interpretemos um cartune de formas que o autor jamais pensou serem possíveis. Desenha-se um cão e o leitor vê um gato. Há também aqueles que reagem por questões de hipersensibilidade religiosa, política ou outra, mas felizmente, tanto quanto me posso aperceber, têm por cá uma expressão diminuta.

Gostaria que comentasse esta sua frase: “Com os blogues, algumas palavras ganharam um novo fôlego”. O José Bandeira, que também já se rendeu a este fenómeno dos blogues, acha que podem vir a ser um novo suporte para o cartune?

Essa frase tinha por referente o termo ripostar. Na sua encosta mais ruidosa, a blogosfera é como uma montanha coberta de neve e os bloggers são como esquiadores, alguns de fundo. Por vezes há gritaria e o resultado é uma avalanche. Na encosta menos ruidosa, longe das estâncias de esqui, nunca há avalanches mas há coisas fantásticas. Mais sossegadas, mas fantásticas. Muita gente a escrever bem, por exemplo. Muito talento. Muito mais do que eu imaginava possível. As palavras, de uma forma geral, ganharam um novo fôlego, sim.

Não direi que me rendi à blogosfera, porque não considero que a ela tenha resistido. Há coisa de quinze anos utilizava computadores em rede e mecanismos de comunicação remota de filosofia muito semelhante à dos de hoje, embora com diferenças assombrosas em termos de tecnologia e de alcance. Quando os blogues surgiram, dediquei algum tempo a lê-los e a perceber qual era o modelo de comunicação que me interessava. Por um lado não queria duplicar o que faço todos os dias nos jornais; por outro gostaria de explorar formas de expressão que também me apaixonam, como a escrita ou a fotografia. Habituado que estava a produzir ideias diariamente, o mecanismo dos blogues era afinal meu conhecido de havia muito. Talvez por isso consiga hoje manter a regularidade indispensável neste meio. A questão da viabilidade do suporte, essa põe-se para o cartune como para qualquer outra forma de expressão.

Também tem feito banda-desenhada e ilustração. Existem projectos neste campo para um futuro próximo?

A ilustração tem sido mais trabalho com amigos que outra coisa. A BD é um caso à parte: tenho com ela uma relação difícil. Treino sobretudo os cem metros barreiras e a BD é para corredores de fundo: exige uma dedicação quase exclusiva que hoje não consigo ter. Fiz três curtas histórias quando tinha os meus vinte anos (que ganharam três primeiros prémios em concursos, passe a imodéstia da referência). Desde então, já muito activo nos jornais, não voltei a fazer BD. Pode ser que um dia…

A série Cravo E Ferradura pode ser encontrada diariamente no Diário de Notícias. Para além disso, José Bandeira mantém uma interessante actividade bloguística em Bandeira Ao Vento.



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