José Mário Branco – 1942-2019
Que se foda a doença, que se foda a velhice. Que se foda a morte. Isto não é um obituário, é uma celebração.
Descobri o José Mário Branco numa adolescência regada a punk e metal, onde havia espaço para outras músicas desde que a atitude fosse parecida. O José Mário Branco tinha-a. De sobra. Ainda a maioria dos membros da geração rasca, da geração à rasca e da geração desenrasca não sabiam bem o que era o FMI e já o Zé os tinha mandado foder. Com todas as letras e de dentes renhidos. Que levassem o progresso e o futuro com eles. Seduziu com uma palavra, mas conquistou com toda uma obra.
Quando digo que o descobri, isso não é inteiramente verdade porque desde pequeno fui torturado com doses massivas de cantigas de intervenção pelo meu pai, e nessa playlist lembro-me claramente de ouvir “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” por entre “Trova do vento que passa” e “Traz outro amigo também”.
Só mais tarde percebi quem era realmente aquele gajo sisudo de bigode e sem papas na língua. Onde o Zeca Afonso transmitia doçura e crítica encriptada, o José Mário Branco transmitia rigidez e uma crítica mais aberta. Era a cantiga de intervenção em modo punk, não só por causa do FMI, mas pela sua postura na vida e na arte, que sempre soube actualizar acompanhando os tempos. Na sua música havia espaço para tudo, desde o teatro, às modinhas, à canção de autor, ao jazz e até world music.
Tal como Zeca, não era homem de se prender a um género e tal como Zeca também, a sua música tinha um sentimento maior-do-que-a-vida.
Pela sua obra pululam referências libertárias como “Nem deus nem chefe” e uma incontornável vontade de confronto aberto com o sistema, fruto da convivência com um Partido Comunista numa era em que a revolução do proletariado era uma possibilidade ou pelo menos uma vontade, primeiro porque havia proletariado e depois porque havia esquerda.
E era à esquerda e do lado dos trabalhadores que se posicionava, rejeitando a côdea e o remendo, como cantou segundo Bertolt Brecht na música do mesmo nome. Era o pão inteiro que exigia, não para si, mas para todos e com a sua morte aos 77 anos, Portugal não só fica mais pobre, como perde parte da sua identidade igualitária, libertária e revolucionária, que está cada vez mais pequena, perdida e esquecida.
Como pedia José Mário Branco em “FMI”, deixem-no morrer descansado. Sem lágrimas de crocodilo dos arautos do poder contra quem tanto lutou em vida. E que a luta continue, mesmo na morte.
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