José Tornada | Entrevista
A música clássica surge aí como a única resposta possível. Voltei a sentir interesse e motivação para compor e descobri que este género era o que me dava mais prazer fazer e o que fazia mais sentido para a fase da minha vida em que me encontro. Penso que dificilmente voltarei a fazer outro registo.
José Tornada poderá não ser um nome familiar a muitos, mas é autor de um dos melhores álbuns nacionais de 2022. Editado no final de Setembro, “Love, Hope, Desire and Fear” é um álbum de uma beleza ímpar. Combinando elementos de música clássica, neo-clássica e spoken word, conta a história de amor, perda e solidão de uma mulher de 70 anos.
Rua de Baixo: Como artista tem um percurso que quase pode ser descrito como camaleónico, tal a variedade de estilos e registos. Foi um pouco um processo de procura e de descoberta que levou a percorrer esse caminho ou, pelo contrário, acabou por ser fruto das circunstâncias?
José Tornada: Acho que acabou por ser fruto das circunstâncias. Aprendi a compor e produzir música desde muito novo e aos 19 anos mudei-me para Londres para tocar com um projecto de Indie/Rock que tinha na altura, foi lá que conheci pessoas da indústria e comecei a compor música para televisão. A partir daí comecei a produzir vários estilos: do rock, à electrónica, até ao Pop.
O processo de procura e descoberta acaba por ser feito inconscientemente e com o amadurecer comecei a entender que haviam géneros musicais que eu só estava a fazer para tentar “furar” em determinado mercado. O melhor exemplo disso foram dois projectos de Pop/Electrónica/EDM que tive que foram editados em Inglaterra para os quais só lancei 2 singles para entrarem em playlists editoriais de música electrónica do Spotify e depois não houve continuidade. Foram projectos que foram feitos só com o Spotify em vista.
RdB: O que é que o reaproxima novamente da música clássica e instrumental? É justo afirmar que O isolamento e simplicidade que procurou na ruralidade alentejana desempenhou um papel fundamental?
JT: Em 2019 deixei de fazer música. Deixei de sentir motivação por saber que aquilo que estava a fazer não era o caminho que devia de seguir.
A música clássica foi o primeiro género musical pelo qual me interessei em criança e nunca o deixei de ouvir. Desde que comecei a compor que queria fazer algo neste registo, mas as circunstâncias e a falta de maturidade não me permitiram. Quando temos 20 anos é muito mais atractivo tocar numa banda de rock e andar na estrada a dar concertos do que estar a praticar piano sozinho em casa.
Em 2021 fui viver para uma aldeia no Alentejo e pensei que a circunstância e o ambiente era o certo para voltar a fazer música. A música clássica surge aí como a única resposta possível. Voltei a sentir interesse e motivação para compor e descobri que este género era o que me dava mais prazer fazer e o que fazia mais sentido para a fase da minha vida em que me encontro. Penso que dificilmente voltarei a fazer outro registo.
RdB: A primeira vez que escutei “Love, Hope, Desire and Fear”, não foi Phillip Glass que me veio primeiro à cabeça. Foi Max Richter e o seu “Blue Notebooks”, muito provavelmente por culpa da componente de spoken word e narrativa que também tem. É um álbum extremamente coeso e que tem de ser escutado do princípio ao fim para nos deixar realmente aconchegados. Como surgiu a ideia de contar a história de amor, perda e solidão de uma mulher de 70 anos?
JT: O “Blue Notebooks” foi sem dúvida uma influência, não só por ser um disco icónico da música neo-clássica, mas também por ter um conceito que transcende a música instrumental. Quando comecei a definir o conceito do disco queria dar-lhe uma componente mais humana e contar uma história. Acho que o fiz por causa de uma procura de legitimidade por ser o meu primeiro trabalho a solo.
A ideia da história de amor e perda surge depois de ter ouvido dezenas de gravações da Roses (mulher que dá voz aos poemas), e perceber que este tema era recorrente no spoken word dela de uma forma abstrata. O processo seguinte foi construir uma narrativa, cortando e colando clips de áudio que fizessem sentido para contar uma história coerente.
RdB: O violino do norte-americano Nathaniel Wolkstein e a voz da poetisa alemã Roses Sabra, são elementos essenciais pela forma como ajudam a ligar e as várias composições. Como é que surgiram no processo?
JT: Conheci ambos através da internet. Já tinha trabalhado com o Nathaniel em projetos anteriores e o que me chamou à atenção nele foi o som do violino. Suave, mas de certa forma agressivo na forma de tocar.
Por vezes é difícil trabalhar remotamente com outros músicos devido à dificuldade imediata na comunicação, mas a Internet e o desenvolvimento das tecnologias veio trazer coisas que seriam impossíveis de fazer há umas décadas atrás.
Tenho duas faixas orquestradas no disco e acho interessante poder trabalhar e gravar com músicos de topo que estão à distância de um clique. Seria impossível gravar estas faixas com orquestra há 20 anos atrás para um compositor que está a começar a sua carreira a solo… Seriam necessários bastantes músicos, um estúdio, microfones, técnicos, etc… Uma logística dispendiosa para um trabalho que hoje em dia pode ser feito através de um computador.
A Roses conheci por mero acaso quando procurava poemas para musicar, fiquei logo colado à voz dela e à entoação com que declamava. Foi uma contribuição preponderante na produção do disco pois é ela que traz a humanidade que procurava dar ao trabalho.
RdB: O álbum e um dos temas, vão buscar o título (“Love, Hope, Desire and Fear”) ao verso de um poema de P.B.Shelley, do século XIX. Trata-se de um verso que, de certa forma enquadrada alguns sentimentos que podem aparecer associados ao amor. O que o levou a escolhê-lo?
JT: Descobri esse poema há uns 10 anos atrás e quando o li fiquei colado no título “Love, Hope, Desire and Fear”. Desde essa altura que achei que era um título brutal para um álbum que tivesse essa temática. Ao longo dos anos vou guardando notas de ideias, títulos de músicas, conceitos, etc.. E ao abrir uma destas listas com ideias deparei-me com o título e pensei que era perfeito para a temática do disco.
Não é fácil dar títulos a músicas instrumentais porque efetivamente não falam de nada. O processo torna-se um bocado aleatório mas o facto de ter um conceito no disco que fala sobre uma coisa concreta fez com que dar nomes às faixas fizesse mais sentido e fosse bem mais fácil.
RdB: Na nota de imprensa é dito que o álbum “é a sua primeira afirmação pessoal e real enquanto artista”. O que leva a esta afirmação?
JT: Duas razões: a primeira é por ser o meu primeiro longa duração a solo. A segunda por finalmente estar a fazer uma coisa com a qual me identifico e que faz sentido para mim.
RdB: “Love, Hope, Desire and Fear” tem uma edição física em CD, mas uma distribuição inexistente, apenas via Instagram, pelo que me apercebi. Embora o álbum esteja presente no Spotify, por exemplo, não está presente numa plataforma como o Bandcamp, tida como mais “respeitadora” dos artistas. Tratam-se de decisões deliberadas?
JT: Como não fiz muitas cópias físicas decidi vendê-las diretamente a quem as queria comprar. Acho que é uma forma engraçada de fazer as coisas porque podemos falar diretamente com quem gosta da nossa música e saber para que zonas do país ou do mundo estão a ir parar os discos.
Não me lembrei de distribuir o álbum para o Bandcamp! Nunca tive grande retorno de projetos anteriores no Bandcamp, por isso não me lembrei de o fazer.
Sem dúvida que plataformas como o Spotify não são as mais vantajosas para os artistas em termos financeiros, mas a realidade é que é um dos melhores veículos de promoção. As playlists algorítmicas do Spotify podem levar o trabalho de um músico a muita gente nova que se interessa por artistas semelhantes. No meu caso só 2,5% dos ouvintes/streams são portugueses. Se o Spotify não tivesse esta capacidade de levar a música a ouvintes novos de todo o mundo, penso que nem 1000 plays teria por música se só dependesse do mercado português.
RdB: E uma edição em vinil do álbum? Está nos planos? A beleza de “Love, Hope, Desire and Fears” merecia ficar eternizada neste formato.
JT:Muita gente me tem perguntado pela edição em vinil, mas infelizmente por enquanto ainda não compensa financeiramente fazê-lo visto que editei o disco de forma independente.
RdB: Tem havido poucas apresentações ao vivo. Poderemos esperar um 2023 mais preenchido?
JT: Quando comecei a trabalhar no disco não estava preocupado como o iria interpretar ao vivo. Só quando o lancei e comecei a receber convites para ir tocar é que comecei a trabalhar nessa vertente. Queria tocar a solo, então tive que transformar algumas faixas e fazer algumas músicas novas para que fosse possível fazer um “one man show” com uma vertente ligeiramente mais electrónica, para o concerto não ser só focado no piano mas também na música ambiente. Por essa razão não comecei imediatamente a dar concertos a seguir ao lançamento.
Como disse em cima, penso que é um bocado difícil “furar” ao início com este género musical em Portugal, daí não estar a ter muitos concertos. Não existe muita procura por este género musical e consequentemente também não há muitos artistas que o façam. Penso que isso está a mudar, e vejo por artistas como o Joep Beving ou o Olafur Arnalds que quando vêm a Portugal esgotam salas. Já tenho mais datas marcadas para 2023, novidades em breve!
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