Kitsune é a palavra nipónica para raposa, no seu sentido místico e de fantasia, simbolizando o espírito deste animal e as conotações que este adquire no universo onírico. Lendas japonesas descrevem estes seres como sendo extremamente inteligentes e perspicazes, com capacidades mágicas que aumentam com a sua idade e sabedoria, consequente da sua experiência de vida. De entre alguns exemplos de poderes místicos que dominam, destaca-se a habilidade de assumir a forma humana, sendo que, normalmente, surgem sob a forma de uma bonita mulher, jovem ou velha. Enquanto que algumas histórias retratam essa habilidade apenas para enganar as pessoas, iludindo-as, outras elevam-nas como guardiãs, amigas, amantes e esposas fiéis. Evidenciam-se também a capacidade de possessão, de aparecer em sonhos e o de criar ilusões.
Este é um dos temas com o qual temos contacto na peça Kitsune, que faz parte desta peça que retrata a espiritualidade mística que envolve os conceitos de vida e de morte, e que surge de novo em exibição no âmbito da comemoração dos 30 anos do Teatro de Marionetas do Porto, que desenvolveu para este propósito um programa que abrange a totalidade deste ano, para incentivar todo o tipo de espetadores a serem influenciados pela magia da arte do espetáculo de palco.
Em destaque nos dias 23 e 24 de fevereiro no Teatro Municipal Constantino Nery, em Matosinhos, é baseada num conto de Júlio Vanzeler, que reflete sobre a vida e o fim do seu ciclo, que embora seja algo natural, é controverso pela sua comum e pesada conotação negativa. De forma espiritual, com influência de lendas nipónicas, narrada apenas (e basta) pelos sons japoneses da música de fundo, esta peça para teatro de marionetas honra a vida e a morte e a harmonia que surge pela complementação de ambas, mostrando o quão bela pode ser a crueldade da morte física para o renascer da vida espiritual.
Com marionetas excelentemente concebidas, com um design um pouco ao tom de semelhança com as personagens de Tim Burton, assustadoramente magníficas, e uma peça, uma narrativa plena de cenários belos e oníricos e com uma execução de alta qualidade, exímia, em que a música fala pelo o enredo, que transporta-nos para um realidade de sonho, espiritual, permitindo-nos observar o quão bela é a conexão entre a vida e a morte.
Sendo um espetáculo integralmente sem texto, retrata a morte nua e crua e o seu lado encantador, que é uma realidade muitas vezes ocultada pela sua conotação comum negativa, como se de um fenónemo que se pode adiar se tratasse. Da reflexão sobre esta surge também e inevitavelmente uma reflexão sobre a vida, sobre a experiência de se estar vivo, fisicamente e espiritualmente, e sobre o antigo ritual de encontro e aceitação da morte como parte de um ciclo natural, trazendo-nos uma verdade mais fantástica e espiritual acerca deste tema que, ainda hoje, é controverso pelos estereótipos e preconceitos de que é vítima.
Este projeto pretende ser um elogio da vida, do reencontro com a simplicidade, do brincar, do amar, do prazer encontrado nas pequenas tarefas diárias, do recordar sem arrependimentos e de calma, mas também de resgatar a possibilidade de dizer adeus. Olhar a morte nos olhos, servir-lhe uma sopa quente e dar-lhe a mão.
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