laforce

La Force|”La Force”

Obrigatório!

Até há algumas semanas atrás no tempo, nunca tinha ouvido falar de LaForce ou até mesmo da cantora que está por detrás deste projecto musical, Ariel Engle (não tenho sido seguidora do trabalho dos Broken Social Scene). O álbum homónimo, “La Force”, havia sido lançado a dia 7 de Setembro e era uma boa oportunidade para ouvir música nova. A partir daí foi a descoberta de uma belíssima caixa de surpresas que é o percurso musical desta cantora canadiana que sempre esteve ligada à cena musical independente de Montreal mas não deu muito nas vistas até finalmente ter optado por fazer o seu caminho musical sem estar associada a outros nomes, apesar de com eles colaborar neste seu primeiro trabalho.

Casada com Andrew Whiteman, um dos nomes fundadores de Broken Social Scene, nunca quis ou, por coincidência, nunca aconteceu que tivesse um papel na banda, sendo que as vozes femininas que estavam à frente sempre tiveram óbvio protagonismo, claro, pelas melhores razões (talvez a fuga desse protagonismo fosse o motivo). Por outro lado, juntamente com o marido, acabaram por dar forma ao projecto AroarA e, apesar de se darem lindamente, acabaram por concluir que talvez fosse melhor que Ariel seguisse o seu próprio caminho, sem ressentimentos (muito pelo contrário), dado que se encontravam num enorme impasse criativo e a energia não estava a fluir mutuamente.

Para quem teve oportunidade de assistir ao maravilhoso concerto de Feist no passado dia 9 de Setembro no Coliseu de Lisboa, teve também oportunidade de assistir a uma excitante primeira parte protagonizada por La Force, que é, curiosamente ou apenas em aparência, muito tímida e discreta. Para quem já tinha consumido em loop constante o igualmente excelente álbum de estreia, ter oportunidade de ver para já em concerto este trabalho representou um enorme rasgo de sorte. É que a protegida de Feist, agora afastada do projecto Broken Social Scene mas através do qual conheceu Ariel Engle, é muito mais do que isso, é amiga pessoal da eterna namoradinha canadiana de Portugal e, para além disso, é um dos seus ídolos musicais – e com muita, muita razão.

Acabamos depois por descobrir que La Force estará de volta a Portugal para fazer a primeira parte de Patrick Watson, outra razão para ficarmos felizes porque nesta altura o álbum já rodou umas boas dezenas de vezes e é um dos preferidos deste ano de 2018. É que Patrick e Ariel também são amigos e colaboradores musicais há muitos anos, outra descoberta que explica porque é que a cantora actua no nosso país duas vezes no espaço de 3 meses, para além de ter aproveitado para fazer uma espécie de escapadinha em Portugal, pelo que se percebe das publicações de Feist no Instagram. Foi também uma forma de celebrar o lançamento do álbum, que saiu durante a curta tour de Feist pela Europa e coincidiu com os concertos em Portugal, em Braga e Lisboa.

A recepção em Lisboa não foi das mais calorosas e só se incendiou um pouco quando Feist subiu ao palco para um dueto com Ariel Engle, num dos pontos altos entre tantas horas de música a que iríamos estar extraordinariamente sujeitos. Ariel, vestida de branco, sozinha em palco com a sua guitarra e mais alguns (poucos) gadgets, impõe a sua presença de forma involuntária e ficámos cheios de vontade de a ver novamente. A escolha do nome para o projecto, proveniente da Força, a carta de Tarot com essa designação, e a escolha de um caminho estético e sonoro sem peneiras, directo ao assunto mas, ao mesmo tempo, muito íntimo, faz com que, no seu conjunto, o álbum “La Force” seja um misto de libertação e força. Construído ao longo de um dos períodos mais conturbados da vida da cantora e compositora, é o resultado da purga de que teve necessidade de fazer, ao passar pela morte do pai ao mesmo tempo que tinha sido recentemente mãe do seu primeiro filho. Por isso, a doçura sonora e até mesmo a candura forte que exala da presença de Ariel Engle são uma mistura agridoce com uma série de temáticas menos agradáveis. Aqui se conjugam sentimentos expurgados através da arte e um trabalho fluido de colaboração com uma série de amigos onde se incluem o seu marido, quase um cavaleiro andante que resgata a sua princesa quando a composição lírica dos temas chegava a um beco sem saída. Por isso, ao mesmo tempo que é um trabalho de liberdade e independência artísticas, também representa o apoio que representa o mundo pessoal e íntimo de Ariel, que não é, de todo, incompatível com o seu projecto a solo. E se antes ainda não tinha ponderado fazer música nos seus termos, agora os astros parecem ter-se conjugado e “La Force” acaba por ser o álbum que reflecte todas essas mudanças e funciona como veículo de libertação pessoal através da arte, da música, da criatividade. Ariel ganhou a voz que sempre teve mas de que ainda não se tinha lembrado de reclamar, não tinha sido importante até então. Aproveita para, pelo caminho, fazer uma série de homenagens a Andrew Whiteman, como é o caso da faixa “You Amaze Me”, onde Feist participa nos coros.

O tema de entrada de La Force, “The Tide”, é mesmo isso, uma enorme onda electrónica, um choque directamente ligado aos nervos, ao mesmo tempo incrivelmente melódica e dançável e trágica, dramática, anunciado que a onda chega a todos. No fim, resta o amor, sempre o amor, esta é a onda que vem fazer a limpeza espiritual, vem forte e arrasa tudo por onde passa mas deixa para trás uma tabula rasa onde se inscreve apenas a herança familiar, quente, aconchegante, a homenagem devida em tempos conturbados de mudança. Se não puderem ou quiserem ouvir mais nenhuma faixa neste álbum, ouçam só “The Tide”, apesar de perderem a oportunidade de viajar por um dos mais ricos trabalhos musicais deste ano, até porque a intensidade nunca se perde, à medida que se adentra por “La Force”.

“La Force” não é um lamento ou diário pessoal de Ariel Engle, é também um manifesto político que toma posição na questão dos refugiados, como faz questão de mostrar em “Ready to Run” ou no modo como as tecnologias afectam as relações e a memória, como em “TBT”, a segunda faixa do álbum. Sob a capa da pop e da electrónica dançável a que não conseguimos resistir mexer o corpo e acompanhar todos os temas, está um álbum que não pretende nem é inocente, pelo contrário, é um caso sério e o feliz casamento entre talento e personalidade. É que Ariel Engle é dona de uma voz incrível, direccionada, melódica, forte e frágil ao mesmo tempo, grandiosa e muito pequena quando assim tem de ser e chegou a altura de assumir a dianteira, mostrar aquilo que tem para dizer, fazer-se ouvir em pleno direito. Chegou a altura certa e, assim, o álbum próprio e a presença nos Broken Social Scene são a consequência de um crescimento em que é possível arriscar sair dos bastidores e continuar a ser relevante – porque é isso que Ariel Engle tem feito: ser discretamente relevante, agora só muda o foco da luz.

“La Force” é um trabalho que tanto é incrivelmente coeso como diverso e é essa multitude de temas e melodias e direcções que o tornam num objecto fascinante de música. É um trabalho de generosidade e dádiva, simultaneamente humano e afirmativo, sob a forma de álbum que passeia alegremente pela pop e pelas sonoridades electrónicas sem perder o rumo ou a personalidade, já que a base das faixas continua ser o “árduo” trabalho acústico de composição a que Andrew Whiteman dá muitas vezes o empurrão de pendor mais digital ou “maquinal”. Quando chegamos a “You Amaze Me”, a espinha dorsal deste trabalho, não podíamos estar mais rendidos e eis que chega um dos temas mais fascinantes deste álbum, o tal da homenagem amorosa ao marido e em que a não menos fascinante Feist dá uma perninha vocal. Algures entre o disco pop ou a pop elástica, a fazer lembrar os temas do “Let it Die” de Feist (de que a cantora fez questão de celebrar os 15 anos com o público do Coliseu), é só uma das mais bonitas canções de amor dos últimos tempos sem nunca se tornar ridícula, talvez por ser tão sincera e autêntica. À semelhança daquilo que Feist faz com as suas canções de amor (quem não se emociona com a autenticidade entrega de “Any Party” ou não lançou uma lagrimita no Coliseu de Lisboa no dia 9 passado?), Ariel Engle não tem receio de tocar nesses pontos mais sensíveis e explorá-los de forma natural e sincera. “You Amaze Me” é uma das faixas mais ricas do panorama musical deste ano, uma explosão de perfeição amorosa impossível de se satisfazer com apenas uma ou duas audições.

“La Force” é uma das surpresas musicais deste ano e uma das melhores produções que pudemos ouvir, um projecto despido e desprovido de artifícios, depurado e sentido, mais do que pensado, não desvalorizando, claro, todo o trabalho que aqui se encontra envolvido. Ariel Engle dá tudo de si em “La Force”, criando um alter ego que funciona como contador de histórias de que talvez não tivesse coragem de explorar em nome próprio. Tímida e explosiva, contraditória, aparece em palco quase receosa mas ao mesmo tempo não pede desculpa por ser assim, é como é, liga a guitarra, engasga-se um bocado com os gadgets que tem em palco mas é tão sincera e humana que nada disso tem importância. Muito mais do que fazer as primeiras partes de concertos de Feist e Patrick Watson, Ariel Engle é uma peça fundamental e cimeira que agora assume essa posição e di-lo com frontalidade de uma forma crua e sem vergonhas. As suas participações nos trabalhos dos amigos e nos seus concertos, na sua carreira, na sua vida, são colaborações, são amizade criativa, são liberdade de fruição e se ainda não tínhamos ouvido falar dela era mesmo porque ela ainda não tinha visto necessidade disso acontecer. Este era o momento de urgência pelo qual a cantora esperava e que chegou agora com este portentoso primeiro álbum, uma das viagens musicais mais viciantes deste ano que ainda corre. Obrigatório ouvir este trabalho homónimo de La Force, impossível ouvir apenas 100 vezes!



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