“Leonardo Da Vinci” de Walter Isaacson
A mente dos mil ofícios
Este vasto livro de Walter Isaacson, Leonardo Da Vinci (Porto Editora, 2019), é um aprofundar a fundo da vida do pintor e dos quadros, mais especificamente, dos cadernos que a definiram.
Pinturas marcantes, cadernos ricos em pormenores, figuras importantes e de relevo, aliadas a um homem que ia além das correntes do tempo.
Esta é sem dúvidas uma das melhores biografias sobre o pintor. Rica em detalhes, e fotografias, baseados numa pesquisa exaustiva, Isaacson aborda as diferentes características de Da Vinci desde a infância até à sua morte.
Leonardo Da Vinci, um homem com muitas características e inclinações, mas acima de tudo, um génio além do seu tempo.
A sua capacidade para combinar arte, ciência, tecnologia e imaginação permanece como uma receita duradoura para a criatividade. O mesmo se pode dizer do seu à-vontade em ser um pouco inadaptado: ilegítimo, homossexual, vegetariano, canhoto, com facilidade em distrair-se e, ocasionalmente, herético.
Um ser de comportamento errádico, raramente terminava um trabalho que tivesse iniciado, dado a que sua mente plena de ideias, que flutuava rapidamente de projeto para projeto, deixando muitas obras e projetos inacabados. Nem mesmo contratos com datas predefinidas surtiam efeito.
Os mais variados contos acerca da sua pessoa, tanto o elogiam como o multi-tarefas talentoso que era, como criticam a sua instabilidade e dificuldade em terminar o que começava.
Mas há quem veja essa “perfeição inacabada”, como autor a descreve, como a marca registada de Leonardo.
Da Vinci, era o homem dos mil ofícios no sentido puro da expressão.
Alguém com uma mente tão extraórdinária que não conseguia submeter-se aos tempos, às pressões e obrigações, com os olhos postos no futuro.
Com uma paixão tão lúdica quanto obsessiva, levou a cabo estudos inovadores sobre anatomia, fósseis, pássaros, o coração, máquinas voadoras, ótica, botânica, geologia, fluxos de águae material de guerra. Tornou-se, pois, o arquétipo do Homem Renascentista, uma inspiração para todos aqueles que acreditam que “as infinitas obras da natureza”, como ele descreveu, estão interligadas numa unidade cheia de padrões maravilhosos.
Criticado por negligenciar a pintura para se dedicar à suas outras paixões, denominadamente, matemática, engenharia, arquitetura, cartogafia, estratégias militares… Muitos consideram-no um traidor das artes, alguém que deixou esse setor empobrecido, despojado de muita beleza e dos encantos que Leonardo ainda poderia trazer à luz. Mas a sua mente era algo de brilhante. Um autodidata que desenvolveu apreço pelo corpo humano, não apenas pela beleza externa, como pelo próprio funcionamento do corpo como máquina.
Um fascínio que levou a que criasse cadernos de pesquisa detalhada, com desenhos ao pormenor.
Este livro de Walter Isaacson, não visa esquecer as pinturas, mas sim, enaltecer os cadernos com mais de 7,200 páginas de desenhos e ideias não concretizadas, que fascinaram o escritor.
Os seus cadernos e os seus desenhos são uma janela para a sua mente agitada, imaginativa, maníaca e, de quando em quando, exultante.
O autor até vai mais longe, ao ponto de considerar que foi esta dedicação minuciosa à descoberta do corpo humano como máquina, que levou Leonardo a dissecar corpos, estudar tudo e desenhar o que aprendia, que o tornou mais apto para terminar o Retrato de Mona Lisa.
Descrito como alguém estrambólico, diferente do habitual, as suas tendências de vestuário, alimentação e escolhas sexuais foram amplamente discutidas.
O que anteriormente o tornava uma “ave rara” aos olhos dos seus conterrâneos permitir-lhe-ia mesclar-se nas sociedades dos dias de hoje.
Vegetariano, com uma prefência pela cor rosa, criado por duas mães, era instável no seu trabalho, porém astuto como uma raposa, e nada o impediu de ser ele próprio e seguir o seu caminho.
Como filho ilegítimo, o seu futuro tinha mais liberdade, mas através da sua auto educação, pode ser muito mais do que o esperado. Tornou-se algo, alguém único.
Levado para Florença pelo seu pai, aos doze anos, depois da morte da madrasta, a vida de Leonardo mudou, algo que ficou refletido em fábulas escritas nos seus cadernos que ilustravam os seus sentimentos em relação à mudança.
Já em Florença a sua formação foi influenciada por Brunelleschi e Alberti, mas será com Verrochio, que Leonardo irá desenvolver a sua arte, quando aos quatorze anos, o seu pai entrega alguns dos seus trabalhos ao artista e pede uma oportunidade para o seu filho.
O programa de ensino de Verrochio englobava o estudo da anatomia de superfície, mecânica, técnicas de desenho e de efeitos de luz e da sombra em materiais; por isso, não é de estranhar que o seu pupilo tenha desenvolvido essa mesma paixão e até mesmo ter ido mais longe do que o seu mestre.
Crescendo entre alguns humanistas do Renascimento, e influenciado pelo culto a Platão, que enfatizava o amor erótico homossexual (l’amore masculino), tornou-se um jovem com atitude e pensamento aberto. No que diz respeito a sexo, viu-se envolto em uma polémica e arriscou ser preso ou pior. Uma acusação de sodomia quase lhe arruinou a vida, mas a influência dos Medici permitiu-lhe seguir o seu caminho.
Isaacson refere como se denota nas pinturas do artista em questão, um contraste entre a pintura de pessoas do sexo masculino vs pessoas do sexo feminino. Os seus desenhos e pinturas de homens são mais eróticos do que aqueles de mulheres.
Talvez por se focar mais na beleza natural e não nos atributos das senhoras, estas surgem mais doces e angelicais, ao passo que nos homens predomina a exposição da genitália, não exageradamente musculados, como nas obras de Miguel Ângelo, pois isso era algo que ele detestava.
Porém, alguns dos homens retratados chegam a ser detentores de características femininas, algo que não deveria surpreender dado que a androgenia atraía o interesse de Leonardo.
No ano em que cumpriu 30 anos, partiu para Milão, a pedido de Lorenzo, o Magnífico, para apresentar uma lira a Ludovico Sforza, Duque de Milão, uma missão diplomática que visava tentar eliminar as ligações turbulentas entre Florença e as outras cidades-estado italianas.
Já em Milão, e após ter enaltecido os seus dons de engenharia ao invés do da pintura, ou mesmo os musicais como Medici lhe pedira, dedicou-se à engenharia militar, tema que agradava a Sforza. Porém Sforza não implementou as ideias sugeridas por Da Vinci, dado que a grande maioria dos seus projetos, eram muito além do que se poderia fazer no seu tempo.
Talvez devido à sua linhagem de notários, investiu muito tempo a registar as suas ideias, observações e esboços em cadernos, e são esses cadernos que perduram até hoje, com mais de 7200 páginas, consideradas um quarto do que ele realmente escreveu.
Esses pequenos livros no seu cinto, a par das folhas maiores que tinha no estúdio, tornaram-se repositórios de todas as suas diversas paixões e obsessões, muitas delas partilhando a mesma página. (…)
Ao colecionar tal miscelânea de ideias, Leonardo seguia uma prática que se tornara popular na Itália renascentista, isto é, a prática de manter um caderno de pensamentos e esboços, conhecido como zibaldone.
Mas a sua entrada na corte de Sforza não foi nem como pintor, nem como engenheiro, mas sim como produtor de espetáculos, tendo idealizado novos instrumentos musicais.
Mas o seu talento não se limitou aos instrumentos musicais e produções teatrais, tendo criado desenhos alegóricos, como brasões, emblemas e exibições heráldicas, que tanto agradavam Sforza; bem como caricaturas “os grotescos”, dedicando-se também a saraus literários.
Ao seu lado, na sua entourage, contou com pessoas que iam e vinham, mas foi Salai o seu companheiro mais importante.
O Duque de Milão requeriu o talento de Leonardo e Francesco de Giorgio para a construção do tiburio para a Catedral de Milão; e a contratá-lo para pintar nas paredes do convento de Santa Maria delle Grazie, uma representação de A Última Ceia.
Leonardo iria, no decorrer dos anos, criar obras como O Homem de Vitrúvio, escultura equestre em argila…
Seguindo as ciências e matemáticas, focou-se em padrões e analogias, aplicando a sua curiosidade e táticas de observação. O seu foco em aves, conduziu-o a criar vários projetos de máquinas voadoras, seguindo-se várias ideias para outros tipos de máquinas (engrenhagens, guindastes, etc).
Dedicado à geometria, foi esta que o ajudou a formular regras sobre o funcionamento da natureza.
No âmbito das matemáticas, teve em Luca Pacioli, frade franciscano, um dos seus grandes amigos, com quem Leonardo aprendeu geometria euclidiana e a multiplicar raízes quadradas e quadrados. Leonardo, por seu lado, realizou 60 ilustrações para o livro de Pacioli. Mas o seu interesse mudou novamente, desta vez para a natureza do Homem.
Outros tópicos abordados nesta biografia, são as obras mais faladas de Da Vinci: A Virgem dos Rochedos, A Dama com Arminho, Retrato de um Músico, e muitos outros, que também são, neste livro, alvo de uma análise minuciosa, correspondendo a arte ao contexto de vida de Leonardo.
Aventurei-me neste livro porque Leonardo da Vinci é o exemplo derradeiro do tema principal das minhas biografias anteriores: de que modo a capacidade de fazer ligações entre disciplinas – artes e ciências, humanidades e tecnologia – é fundamental para a inovação, a imaginação e o génio.
Ao longo de 700 páginas, Isaacson pretende demonstrar como todas as influências e diferentes aprendizagens, influiram na forma do artista pensar/encarar o mundo bem como nos métodos utilizados para exprimir os seus sentimentos/pensamentos.
O que torna este livro um acompanhamento, quase passo a passo, da vida do pintor e da pesquisa do escritor, que permite ao leitor descobrir mais e mais sobre Da Vinci, ao mesmo tempo que descobre o ponto de vista de Isaacson e a sua admiração pelo génio que era Leonardo. Um olhar íntimo e profundo sobre todas as camadas que compunham o artista e o tornavam tão especial e interessante, até mesmo nos dias atuais.
Leonardo da Vinci, de Walter Isaacson, mais do que uma biografia sobre o artista, é um livro sobre o homem.
Um homem curioso, um artista brilhante mas instável, um engenheiro com criações muito além do pensado na época, um génio preso numa garrafa, sempre a tentar sair dos limites da caixa que era a sua realidade.
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