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Leonor Baldaque | Entrevista

"Fica muito por dizer porque cada melodia e cada letra são um mundo inteiro para mim. É como um mundo no nosso mundo. E ainda bem que assim é, porque assim temos um objectivo. Ainda que seja um estímulo enorme e uma grande angústia, as possibilidades são tantas."

Leonor Baldaque acaba de lançar o seu primeiro álbum, tendo o mesmo sido apresentado, pela primeira vez, ao público, a 22 de Fevereiro, na Casa da Música, no Porto. Desde então, a cantautora já tem realizado mais concertos no âmbito da apresentação deste novo disco. A nítida sensibilidade a partir da qual brota este “A Few Dates of Love”, advém de uma delicadeza criativa que tão bem caracteriza, alimenta e sedimenta a artista.

A actriz e escritora afirma-se, agora, como cantautora. Vive amando a Arte e, através dela, vai delineando os seus contornos e apreendendo as subtilezas da existência. Este álbum é o resultado desse (quase) apaziguamento, como um sussurro perante as demandas que vão surgindo. São dez canções compostas por Leonor Baldaque, em inglês, numa simbiose estreita entre voz e guitarra.

Dotada de uma voz meiga e presente, a artista tem marcados vários concertos por diversos palcos pelo país. As datas vão sendo anunciadas nas redes sociais da cantautora.

Boas escutas! Que este “A Few Dates of Love” seja um regresso a casa.

Rua de Baixo (RDB): Um caminho pelo cinema, pela escrita e agora pela música. Como começou, como tem sido e para onde caminha esta viagem pelo mundo artístico?
Leonor Baldaque (LB): Este caminho começou há já muitos anos, quando comecei a trabalhar no cinema com o Manoel de Oliveira. Acho que fiz dez filmes com ele. Depois, a certa altura, como a minha paixão, desde muito pequenina, era a escrita, decidi deixar o cinema e mudei-me para Itália, onde me dediquei unicamente a isso (a escrita). Embora tenha adorado trabalhar como actriz, o que acontecia era que sempre que estava a trabalhar num romance, tinha de interromper para ir filmar e assim sucessivamente. Então, a certa altura, decidi cortar mesmo com tudo e mudar de país (sendo que já estava a viver em França e não em Portugal à época). Ao mudar-me para Itália, pude dedicar-me totalmente à escrita e terminar, finalmente, o meu primeiro romance, que tinha começado antes das minhas últimas filmagens, com um filme que se chama A Religiosa Portuguesa. Dois anos em Itália e o meu romance ficou concluído, tendo sido publicado em França. Escrevi o meu segundo romance e voltei de novo para França. Os anos foram passando, fui trabalhando em vários projectos ligados ao teatro e à escrita, até à altura da pandemia em que decidi comprar uma guitarra. Eu já tinha estudado violoncelo e piano, muitos anos antes, mas quando comprei a guitarra foi como uma paixão imediata e comecei logo a fazer canções. Muito depressa soube que queria fazer um disco. Comecei a ter muitas, muitas canções, até as organizar num álbum. A verdade é que a maior parte das canções que compõem este disco remetem todas a esta fase muito inicial.

RDB: Vive em Paris há cerca de 20 anos; qual é o enquadramento que faz da arte lá? Nomeadamente, em termos musicais.
LB: Já estou em Paris há quase 25 anos, mas neste momento estou mais no Porto, uma vez que estou nesta fase de lançamento do álbum. Eu acho que Portugal é um país com um enorme amor pela música, sem dúvida. Basta olhar para os festivais que temos, a quantidade de cantores que cá vêm; é impressionante observar tantos cartazes na rua. Sem dúvida que é um país muito musical e com uma juventude que ama a música. Ainda que em França também se ame muito a música, eu acho que são países muito diferentes, nomeadamente em termos daquilo que se canta. Há formas de viver (a música) muito diferentes lá e cá. Eu diria que há uma paixão comum pela música, mas, se calhar, há uma tradição de cantautores franceses mais vasta. Até porque também há mais pessoas lá. E sim, a mim, há muitos cantores franceses que me marcaram, até mais do que cantores portugueses, embora eu goste muito de música portuguesa também.

RDB: Inspirações (e/ou limitações e/ou motivações) ao processo criativo? Musicalmente.
LB: O que eu senti foi que, quando comecei a fazer canções, é como se eu já tivesse toda a minha bagagem de inspirações muito consolidada. E, peguei um pouco em tudo isso, e comecei a fazer canções. A partir desse momento, ainda muito no início, quase não podia ouvir música. Sentia quase como uma interferência, quase temia perder a minha própria voz, o meu próprio caminho. Quando percebi que estava mesmo lançada, com imensas canções a fazer, retomei o contacto com a escuta de outros cantores. Posso dizer-te que as pessoas que me influenciaram muito, muito foram o Bob Dylan e, nomeadamente, o Leonard Cohen. Joni Mitchell, Kate Bush também são grandes inspirações… e o jazz que eu tanto adoro! Em França gosto muito de Gainsbourg e de Brel, que é belga. Diria que todo o início do processo, sobretudo o primeiro ano e meio, foram de uma tamanha descoberta, não posso dizer que tenha havido um único momento de vazio. O que aconteceu a seguir foi o contacto com a profissionalização… entrar numa agência, a realização de videoclipes, tudo o que a construção musical implica como trabalho, toda a parte em que tornamos o trabalho público. E não é que a inspiração tenha abrandado, é só que fisicamente e mentalmente temos menos espaço. Menos espaço porque parte do tempo passa a ser dedicado à promoção do trabalho e à preparação de concertos. Portanto, temos que ter muito mais disciplina para manter o espaço sagrado da criação, para que não seja invadido pelo contacto com o exterior (até porque o trabalho criativo se faz muito na solidão). Então o meu maior desafio é este.

RDB: Ser cantautora e actriz. Um sonho relacionado com isso. 
LB: Quando comecei a fazer cinema e estava a estudar teatro, queria ser actriz. No entanto, sinto que, enquanto actriz, já percorri o percurso que gostava de ter percorrido. Não tenho vontade de voltar a fazer filmes. Tenho gostado de realizar e representar os meus videoclipes. É como se me desse a oportunidade de restituir, através da imagem, tudo aquilo que fui absorvendo enquanto cinéfila e enquanto pessoa que está atrás da câmara e que conhece os bastidores da realização de um filme. Dá imenso trabalho, mas tem-me dado imenso gozo. Os meus sonhos estão mais relacionados com o meu próximo álbum ou com o meu próximo romance.  A esperança de que os concertos continuem a correr bem, por exemplo. E o meu segundo romance francês acabou de ser traduzido para português. Esse também é o grande sonho, sabes? Ter um livro traduzido é uma coisa tão inesperada e tão bonita… Os meus sonhos estão voltados para aí neste momento.

RDB: Que urgências a assaltam neste momento? Nomeadamente, artisticamente.
LB: Eu diria que é manter o espaço sagrado da criação. Artisticamente, é isto. E continuar a preservar um espaço de leitura, que é muito importante. E um afastamento, que é meu, das redes sociais. Eu não acredito que se consiga fazer algo interessante quando se está conectado com as redes sociais, no sentido em que eu acho que o trabalho interessante nasce dos enormes espaços de silêncio que existem e se criam quando, por exemplo, nos levantamos, começamos a tocar um instrumento, pegamos num livro, etc… como se estivéssemos numa espécie de vazio. Eu tenho imenso cuidado com as redes sociais, frequento muito pouco. Mas é uma tentação, porque toda a gente quer saber se as coisas estão a correr bem… Acho que é uma grande ameaça para um criador. E esta também tem sido uma urgência permanente minha. Por isso, sempre neste intuito de preservar o espaço da criação…

RDB: O que espera com este brotar? Quem é a Leonor antes e depois deste álbum?
LB: Se houve uma mudança? Não sei. Eu acho que a mudança existiu antes e depois de comprar a guitarra. Sabes, é como se a tua vida fosse uma espécie de silhueta de uma árvore. E, de repente, quando comprei a guitarra, os ramos puderam ir para todo o lado. O que não quer dizer, claro, que não haja outros pontos ainda por explorar com outra(s) forma(s) de arte… Mas, de facto, quando comprei a guitarra e comecei a aprender, senti que a silhueta estava a ser toda preenchida e isso foi uma descoberta incrível. O que eu quero com este álbum, o que eu acho que todos nós artistas queremos tanto com o nosso trabalho é que o mesmo seja, senão compreendido, pelo menos apreciado. O que eu mais espero é que as pessoas gostem. E que surjam possibilidades de voltar a estúdio para gravar outro álbum. Já estou impaciente com o próximo single e, até mesmo, impaciente por mostrar coisas que não estão em álbum – singles off-record. Há tanta coisa à volta deste álbum, a fervilhar, que me apetece ir complementando esta imagem que só por si já é muito verdadeira.

RDB: Como se caracteriza este álbum com dez músicas? Qual a mensagem que o mesmo pretende transmitir?
LB: Eu acho que é um álbum muito despido e verdadeiro. Não há artifícios para esconder o que quer que seja, até pelo facto de ser só voz e guitarra. Eu quis começar apresentando-me desta forma. Com o passar do tempo, quero poder explorar outros instrumentos. Mas quis que, inicialmente, fosse uma coisa extremamente despida e verdadeira e, por isso, também muito íntima. São canções baseadas num conjunto de textos e melodias que eu espero serem muito pessoais e que representem momentos da vida das pessoas. São histórias que eu conto e que sinto quando as componho e interpreto, como viagens. Por exemplo, a The Palace, para mim, é uma viagem até à Índia, até a um Palácio Indiano. Mal começo a cantar, viajo. E se há uma mensagem que eu gostaria de transmitir, é a de liberdade absoluta no processo criativo. No caminho, vamos encontrar, inevitavelmente, pessoas que nos vão dizer que o que estamos a fazer não está certo. O grande segredo é agarrarmo-nos àquilo que achamos que devemos fazer. Há poucos conselhos que se devam seguir. Importa-me, portanto, transmitir uma mensagem de enorme liberdade.

RDB: Algum ritual ligado ao processo criativo?
LB: Eu acredito imenso nos rituais, acho que é uma coisa mesmo importante. A maior parte dos artistas que eu conheço, ou sobre os quais li e fizeram coisas de valor, tinham rituais. Para mim, a coisa mais importante, é começar o dia a ler. Pode ser um simples poema ou uma página de um livro. Mas contactar-me com um artista, coloca-me, já, num plano de exigência. Depois, é muito importante o estudo da guitarra, que é ainda relativamente recente para mim; e começar o dia a estudar guitarra mantém-me os dedos ágeis. E, muitas vezes, quando me engano ao estudar uma peça clássica, é aí que surge uma canção. É curioso que no erro se infiltre um som e eu começo a fazer uma canção. Normalmente, também não falo muito de manhã. Há como uma continuação da noite e do sonho, que me guia de manhã. Como um caminho discreto que me leva directa à criação. E eu adoro esse momento, em que começa a manhã e eu saio do sonho… é muito fértil.



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