Revisitar Lou Reed #1
"The Velvet Underground & Nico"
Paternalmente indissociável do panorama musical desde que, há 50 anos, mais coisa, menos coisa, surgiu neste mundo preconceituoso, rendilhado cuidadosamente por formalismos descomedidos, Lou Reed enegreceu anteontem, como grosseiro carvão sujo que nunca foi, a imagem da música que de véu breu se revestiu, de luto sentido e incomum. Sonic Youth prestaram lamentações, às quais outros monstros, naturalmente, responderam e amplificaram.
Lou Reed merece, enfim, por fim, uma homenagem em tom de despedida, gris saudosismo agridoce. A Rua de Baixo projecta, então, uma revisitação aos trabalhos de renome de quem o nome não mais sairá incólume em referências; seria óbvio, a partir desta premissa, a análise, a exaltação de teor religioso de “The Velvet Underground & Nico”, o primeiro e, indiscutivelmente, o mais icónico dos trabalhos do “mestre poeta” norte-americano, aquando da fase filantropa de Andy Warhol nos The Velvet Undergound.
Embora Warhol protagonize, por si só, evocado por cromáticas – influência desinteressada da pop art – magras faces, um carismático artista, potencialmente hipócrita na arrogância da sua vertente artística, não se verificou o condicionamento melómano, o humanitarismo calculista de raízes pretensiosas que floresceria embrenhado na renúncia ao altruísmo do amante das artes. Não. De facto, Warhol demonstrou-se tolerante, influente apenas, retumbante no que provavelmente seria propaganda. Repudiemos no entanto a especulação inerente, quanto à evidente capa da obra e à inclusão de Nico na banda; caprichos que desaguaram no desvanecimento paradoxal da importância da cantora na hierarquia Reed-Cale. Por, novamente, motivos a que a especulação prestaria ritos vulgares, na vulgaridade dos obnóxios panoramas que se formariam, Nico foi remetida para um segundo plano que se discernia, tenazmente, portanto, no próprio título do récord, na “& Nico” discriminada na sua condição ignóbil de outsider, onde mais tarde, já em valores intrínsecos ao estilo da banda, teria a sua participação vocal demovida nas faixas noisy.
Circunstâncias antípodas: hostilidade inconsequente que se prostrou diante da composição lírica de Reed, do âmago simbólico de TVU&N. A procura pelo êxtase alucinogénio de «Heroin», onde o «poeta do rock» está “as good as dead” e a devassidão voluptuosa de «There She Goes Again» tropeçam tropegamente na recorrência que encontram na monocórdia vocalização de Lou, frígida em pretensão, poetisa dissonante, sensivelmente mordaz, concretizando a devoção desinteressada do autor norte-americano.
Reed foi, de facto, o percursor do proto-punk que Iggy Pop desenvolveu, em tais termos, embora o narcótico psychadelic rock se revelasse mais assiduamente na sonoridade da obra; enfim, a sonoridade que individualizou, desde então, o carácter noise dos TVU: a textura ameaçadoramente harmoniosa que revestida, ora a veludo, ora a asfalto, melodiosos deleites instrumentais que acompanham os ternos vocais de Nico, saturadas guitarras incoerentes e saturadas desreguladas por baixos acidificados, latejando, por entre percussões camufladas, na misantropia duma criação que é apenas real e conjecturável num estúdio-cave nova-iorquino, em finais dos 60’s, em finais de nirvanas empíricos, que resultaram na trashy azáfama efervescente em anarquia e delinquência que desenhou o caminho e influenciou vivamente, como “when the blood begins to flow”, o pós-punk de Joy Division ou o noise rock de Sonic Youth ou o shoegaze de Jesus and Mary Chain.
Discerne-se, portanto, a celebração da dissonância, do noise, em faixas como «The Black Angel’s Death Song», numa opressão claustrofóbica, ou «Venus in Furs», atrozmente possuída por elípticas, ásperas improvisações. É a densidade insana da subtileza que «European Son» possui, da tempestade estilhaçada inicial, deliberadamente pop-art, ao auspício fatalista onde culmina: a renúncia à resignação que Reed não aceita, ao cândido inconformismo que possui o seu corpo, voz e alma, a um existencialismo intrínseco a caprichos que tão necessários aparentam coexistir nas ruas desoladas e intimidantes que TVU destroem; destruição que prazerosa se demonstra.
É ingrato abjurar a relevância, quer histórica, quer momentânea, dum récord transviado e notoriamente excepcional que se menosprezou e menosprezado foi na sua era, que culminou no predomínio distinto quanto à vanguarda da música contemporânea, tornando-se um cânone rock ilegítimo, na sua condição transgressiva; uma ode portentosa anti-preconceito, dependendo da imortalidade de «Femme Fatale». Culmina exasperada, após frugal esquizofrenia, limpa o suor, mira a nostalgia de frente e quebra. Um bem-haja ao amanhecer dessa juventude de faggot junkies.
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