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“Lucy à Beira-Mar” de Elizabeth Strout

Diário da pandemia.

A História tem sido marcada por períodos de vagas de doença que mudam quotidiano e ceifam vidas, por vezes milhões. Foi assim com a Peste Negra, no século XIV, ou a Gripe Espanhola no raiar do século XX. Mais recentemente a sombra voltou a ameaçar a saúde global através da pandemia COVID-19, um problema que expôs a extrema vulnerabilidade física, emocional, e até social e económica, em que vivemos, mesmo numa época em que os avanços médicos e tecnológicos signifiquem que nunca antes se registaram tantos e tão importantes progressos em várias áreas.

Algo que a pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2 também demonstrou é que todos, mas mesmo todos, podem ser vitimas, não importa o grau de edução ou o degrau ocupado na escada social. E essa estranha e terrível fragilidade eleva o medo, principalmente quando somos obrigados a enfrentar o confinamento.

É toda essa realidade que Elizabeth Strout explora em Lucy à Beira-Mar (Alfaguara, 2023), o seu mais recente livro e que traz a palco, claro está, Lucy Barton, uma das personagens mais icónicas da literatura moderna, que, também ela, se vê forçada ao confinamento quando o pânico em relação à COVID-19 dispara em todas as direções, principalmente nos primeiros ecos da infeção pois o desconhecimento, as dúvidas e incertezas levavam o mundo a fechar-se em casa, refém das notícias que chegavam via televisão e Internet, assim como a muita contra informação e as fakenews inundavam as redes sociais.    

 

No meio de todo esse turbilhão, Lucy Barton diz adeus a Manhattan e, na companhia do seu ex-marido marido William, ruma a uma pequena cidade costeira do Maine e vive uma desventura diferente, relatada com mestria por Elizabeth Stroutque nos revela como o isolamento e a incerteza, como, infelizmente, ficámos a saber, pode abanar o nosso edifício mais intimo, principalmente quando o mundo parece colapsar à nossa volta e estamos longe de quem mais amamos.

Assim, com pouco para fazer, Lucy, e também William, preenchem o vazio das suas vidas de isolamento com o recurso a memórias e fantasmas, alguns deles sob a forma de feridas que teimam em sarar. No cerne de tudo estão as relações intimas e o fracasso que se tornaram e que levam, em especial no caso de Barton, a perceber que tem uma «alma velha» que aumenta a probabilidade de ser (re)visitada por perigosos ataques de pânico e pesadelos.

Entre as referidas memórias da protagonista, contam-se uma infância vivida na mais extrema pobreza que deixou marcas para sempre, experiência essa também uma espécie de confinamento, como escreve maravilhosamente Strout, mas também a recente perda de David, o último marido de Lucy, e cujo luto parece não terminar, ou o regresso das «visões» ou de uma «mãe inventada na cabeça» e da sensação de revolta por não conseguir focar-se no presente.  

Mas é também na escuridão que se alcança a luz, e, através de uma simplicidade narrativa, absolutamente bela, e palavras que parecem arrancadas das nossas cabeças, um dos traços mais extraordinários das obras de Strout, que Lucy vai reconstruindo o seu mundo, mesmo que isso signifique enfrentar os dramas pessoais das suas filhas, que em alguns casos parecem clones dos seus, a aproximação de William à sua irmã ou a (quase) certeza que a sua vida anterior, vivida no coração de Nova Iorque, possa vir a ser passado. Mas essa luz, essa esperança, pode também ser uma simples caminhada costeira na companhia de novos amigos, outras rotinas ou, inesperadamente ou não, abraçar um amor antigo.

Tal como nos outros livros de Elizabeth Strout, todos os pormenores (emocionais) contam em Lucy à Beira-Mar, e as palavras guiam-nos por uma narrativa complexaque de tão natural e simples cria laços de cumplicidade e compromisso entre leitor e as páginas que refletem sobre uma personagem que se confunde com a própria escritora. Por isso, não se estranha conseguirmos tomar como nossas, perdas edesilusões, reflexões da vida sobre um mar de incertezas e, acima de tudo, falta de autoestima, já que a pandemia sublinhou um desnorte emocional, mas também pessoal no sentido de fazer-nos questionar o passado em especial de uma vida sem conquistas e que não afasta humilhações, como é caso de Barton, mas que, ainda assim, tem a capacidade e força de «raciocinar à luz de si própria» num somatóriorepleto de vazios em continuo confinamento, mas em que o amor (e a solidariedade) consegue perdurar.



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