Quem não arrisca não petisca
“Mais Pra Menos Que Pra Mais” de Vera Mantero & Convidados
Vera Mantero, uma das mais conceituadas bailarinas e coreógrafas portuguesas, apresentou, a propósito da celebração dos 20 anos da Culturgest, parte da sua nova performance intitulada “Mais Pra Menos Que Pra Mais”.
Este trabalho ainda em progresso de Vera Mantero & Convidados tem a sua estreia prevista para 2014.
Mais uma vez o seu trabalho surpreende-nos, desta vez com uma instalação/performance onde somos imediatamente colocados num ambiente confortável, descontraído, ainda que à primeira vista desordeiro, numa construção natural que parece colocada ao acaso, centrando-nos essencialmente nos fundamentos da condição humana – a construção, onde tudo começa, a formação e informação a que somos sujeitos por iniciativa própria ou imposta, os sons aos quais reagimos e o corpo aberto em oposição ao corpo fechado.
Vera Mantero explora a ideia do corpo desavergonhado e confortável na sua condição natural. Essa redução da racionalidade para atingir um corpo mais livre e aberto, teve como base a ideia de uma outra performance cuja estreia em 2012 no Teatro S. Luiz expõe a história ocidental do corpo nu e a relação com o pudor económico e político – intitula-se o SUB-REPTÍCIO, o corpo clandestino.
A bailarina e coreógrafa revela-nos:
“Essa peça surge como a base conceptual de Mais Pra Menos que Pra Mais,
cuja ideia era basicamente sentirmo-nos literalmente bem na nossa pele, a pele nua. Despir uma sociedade que tudo cobre e tudo cobra. As nossas ‘vergonhas’ como a especulação financeira, a destruição do planeta e as diversas economias nacionais pela ganância global desenfreada. Descobrir essas falsas vergonhas.
Foi uma aluna minha quem me alertou para o facto de que o estado e economia, esse conceito tal e qual o conhecemos, surge ao mesmo tempo, ou juntamente, com o conceito de boas maneiras ou a chamada etiqueta. Isso é muito curioso. A mim interessa-me bastante essa possibilidade de viver sem constrangimentos, ou seja essa redução de racionalidade. O corpo fechado e o corpo aberto. O corpo que produz, desenvolve o capitalismo e gere a economia, com pouca margem do ser livre.
Interessa-me outras formas possíveis de vida, e acredito que isso será apenas possível em conjunto, em grupo. Um realização em grupo para atingir uma realização pessoal. Sinto falta disso, dessa realização colectiva que acredito ser sustentável através da vivência. Não basta estarmos simplesmente em casa a reciclar.”
Ao entrarmos na sala do grande auditório da Culturgest, somos levados para o mundo natural, onde nada deve ser tratado como um objecto ou “mercadoria”, mas sim como um palco passageiro que deve ser experienciado e não observado.
Uma passagem de lama, sons vindos de um piano, instalações de som acessíveis a qualquer um, bombeiros a caminhar numa sala cheia de fumo e a declamar poesia ou breves passagens de pensadores e filósofos, palavras projectadas, sons que ecoam e corpos sem medo de serem bichos. O Menos é experienciar e os sentidos estão em alerta.
“As pessoas dentro da sala estavam contentes, foi muito lúdico. No fundo trata-se de um território sonoro onde as pessoas se comportaram de uma forma bem disposta. Essas experiências de ordem sonora (com os músicos e os dispositivos), essa multiplicidade de sons resultou num desfrutar de um conjunto, um todo, não exactamente um caos mas mais uma mancha sonora.
E como se entrou no auditório, de pés descalços, faz com que as pessoas fiquem automaticamente noutro estado, com o corpo mais aberto. Esse era o objectivo e acho que foi conseguido. As pessoas ficaram imediatamente física e mentalmente noutro lugar. Mais vulneráveis, com uma disponibilidade diferente. Não é um trabalho para ver mas sim para ser atravessado. As pessoas tornaram-se mais activas. O conceito era mesmo esse, não esperar sentados na plateia, mas sim experimentar. No fundo, quem não arrisca não petisca.”
Este projecto ainda em progresso foi criado inicialmente com Elizabete Francisca e Urândia Aragão. Conta também com a participação de diversos convidados que partilharam os seus trabalhos musicais, sonoros, vocais, improvisados, de escrita e eco-construção, alguns membros do CICS – Centro de Investigação da Cultura e Sustentabilidade, com quem Vera colabora, também alguns artistas habitantes de Montemor-o-Novo, actores, performers e músicos lisboetas.
“Algum tempo antes desta performance na Culturgest, estive num evento em Montemor-o-Novo onde haviam variadas instalações em árvores, sendo que as abordagens eram muito diferentes umas das outras. Achei tudo aquilo muito interessante e resolvi propor a esses artistas para se juntarem e ocuparem o palco da Culturgest com algumas dessas instalações.
No fundo a estrutura de Mais Pra Menos Que Pra Mais é muito simples, tem três grandes eixos – a escrita, leitura e eco-construção.
Houve alguma improvisação na parte da leitura e a reacção dos performers foi também improvisada, eles não sabiam como é que o público iria reagir face aos momentos de leitura. No entanto tudo o resto foi estruturado. Dentro do auditório resolvemos aumentar o número de bombeiros. A incisão do grande foco de luz na zona da terra, era por assim dizer, o coração do espaço. Fazer a primeira pedra, é na construção onde tudo começa.”
“Mais Pra Menos Que Pra Mais” é tão importante na sua relação com o movimento de transição como de decrescimento, e neste espaço de corpos livres e pés descalços há espaço para tudo isto numa performance onde ser livre no sentir e pensar, arriscar e observar é usufruir, é experienciar.
Num ambiente de interactividade social, é conseguido através da simbiose do ser na sua condição mais honesta e natural, o corpo sem vergonha de ser bicho, e um espaço confortável onde ninguém é excluído, apenas se por opção própria, reunindo um ambiente lúdico, despreocupado e livre de julgamentos ou sentenças.
Vera Mantero & Convidados deixaram certamente em aberto o nosso bicho da curiosidade para ver como terminada esta peça, que se junta a quase 26 anos de trabalho da coreógrafa portuguesa.
Vera Mantero nasceu em Lisboa em 1966, estudou ballet até aos 18, altura em que integrou a companhia de Ballet da Gulbenkian. Depois de 5 anos envolvida com a dança clássica, Vera percebeu que a sua expressão corporal precisaria ir mais além.
Rumou a Paris e Nova Iorque onde estudou técnica de dança contemporânea, voz e teatro acabando por deixar de parte a dança clássica.
“Sempre senti que a dança tal como a conhecia era uma forma de expressão muito fechada, e isso custou-me bastante. No fundo era um tipo de dança estética quase decorativa. Cedo precisei de encontrar na dança uma coisa mais complexa, mais real para mim, que fizesse mais sentido. Foi então que fui procurar no teatro e artes plásticas a possibilidade de aplicar e criar esses métodos na dança. E uma forma de lhe dar mais intensidade ou sentido era por exemplo trabalhar com a palavra. Nós quando estamos a falar fazemos gestos e não falamos só com esses gestos, mas sim com as palavras. Se usares apenas uma delas o sentido será diferente ou não terá o mesmo impacto.”
A sua forma de trabalhar muito orgânica e ampla torna o conceito de dança ou expressão corporal abrangente, cria no bailarino um performer completo. “A dança não é um dado adquirido, acredito que quanto menos o adquirir mais próxima estarei dela”.
No olhar para um mundo de prioridades distorcidas onde a maior luta é contra o empobrecimento do espírito, Vera reúne através dos sentidos e com todas as suas armas sensoriais, a sua visão da sociedade e qual o nosso papel activo ou passivo dentro de um mundo turvo.
A sua primeira coreografia surge em 1987 e desde 1991 que tem divulgado o seu trabalho por toda a Europa, Canadá, EUA, Argentina, Brasil e Singapura.
O que ainda nos espera em “Mais Pra Menos Que Pra Mais” na estreia no próximo ano?
“Sinceramente ainda não sei”.
Fotografia de Cláudia Mateus
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