Manuel Fúria @ Ritz Clube (22.02.2013)
Isto é pop/rock popular português (e do bom)
Viajando em contra-mão de encontro aos faróis dos arautos da modernidade, que vêem o fim do mundo ao virar de cada esquina, o Almirante Ramos veio falar-nos dos dias que correm de sorriso nos lábios. Afinal, nas palavras do Almirante, este é um tempo favorável para viver o amor, abraçar o romance e acreditar na esperança. Algo que se sente a cada nota de “Manuel Fúria contempla os lírios do campo”, disco com cheiro a flores e sabor a épico que Fúria e Os Náufragos apresentaram ontem à noite no palco de um muito bem composto Ritz Clube.
Foi no «Lugar da Cuca» que arrancou a viagem musical, rumo ao tempo dos príncipes e das princesas, dos bobos e das cortes, dos bailes e romarias. «Nossa Senhora dos Degolados» é um épico com sabor a far-west, interrompido com uma variação la bambesca, em modo festivo-esganiçado, cortesia do convidado de honra Samuel Úria.
“É bom tocarmos para pessoas e não para paredes vazias”, diz Fúria, mostrando que, apesar de muitos, os TPC`s feitos em horas tardias valeram bem a pena.
«Tarde Livre, Parte III» inicia-se em modo a capela, para de seguida trazer à cabeça a imagem de pés descalços correndo na erva rumo a um pôr-do-sol que ficaria bem emoldurada numa das paredes da casa dos Arcade Fire. É tempo de entoar “uma canção que não é nossa mas, num certo sentido, também é nossa”, lança Fúria antes dos primeiros acordes de «Sonhos de Menino», um original de Tony Carreira sobre os tempos que não voltam.
“Isto que fizemos até agora não conta para nada, o concerto começa agora”, grita Fúria no encerramento do primeiro de três actos. É hora de fazer uma «Declaração de Intenções», que alguns viram como uma adaptação de um cântico dos super-dragões, mas que representa muito mais do que pegar fogo à capital do império: mora aqui todo um desespero moderno, o desejo de fuga para o lado bucólico da vida, cruzando as fronteiras urbanas para admirar os lírios do campo e todas as outras flores. Entram os metais, de braço dado com um banjo eléctrico e dois violinos, avançando um passo mais na direcção do desejo épico.
«Estandarte», uma das pérolas do novo disco de Manuel Fúria, é o estado de harmonia sobre o caos instrumental, conseguido pela multiplicidade de instrumentos e vozes que ecoam em uníssono.
«Procuro a Claridade», com Tiago Guillul a recitar um mantra – “procuro a claridade mas respeito o mistério” -, é rock dançante a fazer lembrar os tempos mais felizes – e festivos – dos Franz Ferdinand. «Que haja festa não sei onde» é claramente o grande sucesso dos bailes populares furiosos, há quem venha de trás para fazer a festa na primeira fila.
Manuel Fúria conta-nos um pouco mais sobre a proveniência de «Jogo do sapo», uma caixa de madeira que esconde uma roldana, muitos buracos, um sapo e números que vão de 5 a 2000. Um bingo expansivo. Há tempo para um pequeno percalço musical antes de surgir um baixo gingão, um violino em delírio e coros sentidos.
Constança Archer sobe ao palco para lançar «A Tempestade», e fá-lo de forma tímida mas com direito a distinção. «À Minha Alma», canção inventada por Os Velhos, serve como milagre para serenar as águas, com Fúria na guitarra acústica, remetido a uma solidão pessoa, antes de ter por companhia um baixo discreto e um trombone lacrimejante.
Agora parece ser definitivo, o estado de alma já é outro. Apesar de estarmos no coração de Lisboa, a poucos metros de uma avenida onde ninguém parece saber muito bem como se circula, o nosso corpo está já no campo, calcando a erva de pés descalços e contemplando «Os Lírios do campo», tema que é a verdadeira declaração de intenções do disco. O grande final chega com «Canção para casar contigo», momento em que sobem ao palco todos os convidados para uma versão grandiosa. A certa altura temos Úria e Guillul nas guitarras, Constança e Pedro Tróia (que havia participado em «Lugar da Cuca») nos coros, e todos os outros num enorme rebuliço. Fúria e os Náufragos entram no barco e partem mar fora, deixando o público a entoar o coro da canção, chamamento entusiasta para um merecido encore.
Há tempo para um inédito, «Guerra Civil», onde o poder beligerante das armas seria substituído por uma guerra de almofadas ou até de rosas, tal não é a envolvência e o perfume pop que exala. Repete-se «Que haja festa não sei onde», cantam-se os parabéns a quem de direito e volta-se a cantar um coro a muitas vozes, terminando o baile com o povo em festa.
“Isto é pop/rock popular português”, havia dito a certa altura Manuel Fúria; mas também poderia ter dito tratar-se de música de baile com um imenso kick. No guião desejado para o concerto que Fúria e banda escreveram, lia-se qualquer coisa como isto: “Toda a gente está muito alegre porque foi um belo espectáculo”. Mais premonitório era impossível. A festa foi grande.
Entrevista a Manuel Fúria aqui. Fotografia por Concha
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