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Mão Morta @ Cine-teatro Louletano (31.10.2019)

Mão Morta frios, corações quentes em Loulé. A banda de Adolfo e Cª mostrou e misturou a distopia com a utopia.

Só mesmo numa narrativa distópica é que poderia fazer sentido assistir sentado a um concerto de Mão Morta. Mesmo sendo verdade que o último disco “No fim era o frio”, cuja apresentação serviu de mote para a tour de 2019, é principalmente um álbum conceptual em jeito de performance, do que um corpo de canções como aqueles a que banda de Adolfo nos habituou. Mesmo sendo verdade que os Mão Morta da primeira parte do concerto do Cine-Teatro Louletano são uma banda diferente dos Mão Morta da segunda parte. Mesmo assim, estar sentado a ver Mão Morta tocar parece um assunto que a banda teria ironizado há alguns anos atrás. Certamente que a decisão não coube aos próprios, terão sido contingências das salas disponíveis no Algarve, onde não existem assim tantas alternativas. De qualquer forma, a primeira hora de Mão Morta ao vivo na noite das bruxas foi embebida em contenção e algum sentimento de culpa. Contenção quando comparada com a hora seguinte e sentimento de culpa porque a banda merece mais. E pede mais. E nós queremos dar-lhe mais.

Se durante a interpretação dos temas do último disco, não foram muitos os momentos em que surgisse uma imperiosa vontade de nos levantarmos, quanto mais de arrancar as cadeiras do chão, já na segunda parte, essa vontade começou a tornar-se irresistível. Começou primeiro com um chamamento em «Tu disseste», mais orgânico e pesado do que o habitual, e tornou-se depois uma inevitabilidade a partir de «E se depois», tema que ganhou corpo extra com as três guitarras com que a banda se apresenta por estes dias. Como esse, também outros do reportório mais antigo, como «Anarquista Duval», «Lisboa» ou «Bófia» nos relembraram o fulgor de antigamente que sempre foi característica dos Mão Morta. Mesmo temas mais recentes como «Hipótese de suicídio» encaixaram na perfeição com os novos e criativos arranjos que os membros da banda arranjaram. E Adolfo, continua a suar mordaz, desesperado e perigoso como sempre foi.

Não quer isto dizer que “No fim era o frio” seja um disco menor. Não o é de forma alguma. Apesar de ser composto de textos originais, está mais próximo da linha de “Há já muito tempo que nesta latrina o ar se tornou irrespirável” ou “Contos de Maldoror” do que da dos últimos discos. Paralelamente e esteticamente os temas entram numa lógica de continuidade, aproximando-se dos terrenos do pós-rock em alguns momentos. Sobretudo ao vivo, os Mão Morta de 2019/2020 apresentam as duas facetas da banda: uma conceptual e outra mais energética. No fim, apesar da apreciação e gratidão que sentimos por existir uma banda tão monstruosa em palco, é difícil não sentir alguma falta de equilíbrio no alinhamento.

Apesar da primeira parte inteiramente dedicada a “No fim era o frio” ter sido irrepreensível, assim que na segunda parte o sismógrafo disparou com os temas mais enérgicos e orelhudos, por via do clássico poder de refrão da banda, é inevitável pensar que aqueles sim,  são os Mão Morta verdadeiros que conhecemos e amamos. Os que nos despertam paixões quando falam de andar à porrada com a polícia, dos ossos de Marcelo Caetano ou de enrolar uma ganza em Budapeste. Nessa altura é difícil não achar que, por comparação, os outros Mão Morta da primeira parte, precisam de refrões, explosões e caos. Mesmo sendo conceptual e correndo o risco de quebrar a narrativa, a apresentação da banda teria ganho mais se as suas duas facetas se tivessem misturado. Não obstante esse facto, o espectáculo conheceu momentos sublimes de Mão Mortice como Adolfo e companhia nos habituaram. Sobretudo quando assistidos pelo excelente trabalho de iluminação. No princípio pode ter sido o frio, mas no fim, foi o quente, aquilo com que ficámos. No coração, na mente e nas tripas. E um bocadinho também nas virilhas.



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