Mário-Henriques Leiria
Vale a pena conhecer aqueles que escreveram a História da literatura portuguesa…
Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura.
– És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia.
Mário-Henrique Leiria, Noivado
(Escritor: 1923 – 1980)
Houvera um cataclismo e tivera eu, por virtude da intervenção divina, que permanecer recluso, que nem Noé sem arca da salvação ou Crusoé sem Sexta-Feira, numa ilha deserta que se me aparecesse misericordioso génio, mesmo que desalojado da sua lamparina em segunda mão, por falta de pagamento de renda, saberia o que pedir para suportar o degredo:
1º Discografias completas de Chet Baker, Miles Davis, Tom Waits e Frank Zappa;
2º Ligação à internet para mensalmente ler a Rua de Baixo;
3º Obra completa de Mário – Henrique Leiria. Bastaria isto para ultrapassar a privação!
Os mais novos talvez não conheçam, todavia, o último nome da lista de desejos. Mário – Henrique Leiria, poeta e pintor, nasceu em Carcavelos por altura dos anos vinte. Frequentou por pouco tempo a Escola de Belas Artes e exerceu várias profissões entre as quais se contam: marinha mercante, caixeiro de praça, operário metalúrgico, construção civil.
Entre 1949 e 1951 participou nas actividades do movimento surrealista em Portugal, tendo sido co-autor do manifesto surrealista “A Afixação Proibida”. De origem francesa, o surrealismo desenvolveu-se em Portugal através da acção de vários artistas interessados em trazer para a poesia e para a pintura o valor do inconsciente, da imaginação e da liberdade poética. A juntar a Mário – Henrique Leiria tivemos, entre nós, o contributo de Mário Cesariny, José-Augusto França, passando por Alexandre O’Neill, os quais influíram, sobremaneira, na história portuguesa deste movimento.
Voltando a Mário – Henrique Leiria, em 1961 foi para a América Latina onde desenvolveu várias actividades, entre as quais a de encenador de teatro e de director literário de uma editora. Volvidos nove anos, regressou a Lisboa tendo colaborado em várias revistas e jornais nacionais. Entre as obras publicadas destacam-se:
1973 – “Contos do Gin Tónico”
1974 – “Imagem Devolvida”
1978 – “Novos Contos do Gin”
1979 – “Lisboa ao Voo do Pássaro”
A escrita de Mário Henrique – Leiria tem uma fronteira ténue com a ironia enformada na boa disposição do seu temperamento literário e na enorme riqueza da síntese com que apresenta as suas ideias.
Se o génio apocalíptico, de que vos falei, realizasse os meus pedidos poderia, hoje mesmo, chegar o dia do juízo final porque ficaria em boa companhia. Ah, já agora e por falar em companhia, fiquem com uns contos, é Mário – Henrique Leiria quem vos oferece. No entanto, o Gin tónico fica por vossa conta. Até um destes dias, fiquem em boa companhia.
TELEFONEMA
Telefonaram-lhe para casa e perguntaram-lhe se estava em casa.
Foi então que deu pelo facto. Realmente tinha morrido havia já dezassete dias.
Por vezes as perguntas estúpidas são de extrema utilidade.
in Contos do Gin, Mário – Henrique Leiria
ÚLTIMA TENTAÇÃO
E então ela quis tentá-lo definitivamente. Olhou bem em volta, com extrema atenção. Mas só conseguiu encontrar uma pêra pequenina e pálida.
Ficaram os dois numa desesperante frustração.
Não há dúvida que o Paraíso está a tornar-se cada vez mais chato!
in Contos do Gin, Mário – Henrique Leiria
A FLÓBER
Ainda me lembro. O melhor presente que tive foi sem dúvida aquela flóber. Toda a garotada da terra colaborou no meu entusiasmo. Íamos para o campo, pam pam, pardal aqui, pam pam, pardal ali.
A única arrelia que tive com ela foi quando um dia, sem querer, pam, acertei em cheio na tia Albertina.
Para castigo não me deixaram ir ao enterro.
in Novos Contos do Gin, Mário – Henrique Leiria
EXAGEROS
O Alfredo atirou o jornal ao chão, irritadíssimo, e virou-se para mim:
– Estes jornalistas! Passam a vida a inventar coisas, é o que te digo. Então não afirmam que, no Sardoal, foi encontrado um frango com três pernas! Vê lá tu! É preciso ter descaramento.
Ajeitou-se melhor no sofá e, realmente indignado, coçou a tromba com a pata do meio.
in Novos Contos do Gin, Mário – Henrique Leiria
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