Marshal Law: The Deluxe Edition | Pat Mills e Kevin O’Neill
Com o crescendo da popularidade das adaptações de Super-Heróis é tempo de voltar a recordar “Marshal Law” e, para tal, nada melhor do que aproveitar esta nova edição Deluxe.
No prefácio, Jonathan Ross cedo associa “Marshal Law” ao género Punk. Os elementos estão todos lá, começando na agressividade e passando pelo niilismo e independência. “Marshal Law” surge como um grito de revolta, um que à primeira vista poderá parecer voltado apenas para a indústria de BD norte-americana mas que, na realidade, vai bem mais fundo – como Pat Mills explica no posfácio. Mais que uma sátira ao universo dos super-heróis, “Law” é também uma severa crítica aos falsos heróis do nosso mundo, aqueles que apregoam guiar-nos na escuridão mas apenas para nos mergulhar mais fundo nela.
Pat Mills, um dos fundadores da “2000AD” e apelidado por muitos como o “Padrinho dos Comics Britânicos”, aliou-se mais uma vez ao mestre Kevin O’Neill para criar esta série cuja publicação teve início na Epic Comics, em 1987. Esta extinta editora pertencia à Marvel e havia sido criada em 1982, tendo posteriormente encerrado em meados dos anos 1990, apesar de ainda ter voltado a publicar no futuro. A partir de 1991 as coisas complicaram-se, começando pela mudança de casa para a Apocalypse Ltd, uma editora criada por autores britânicos, entre os quais Mills e O’Neill, que pretendiam continuar publicações sem o envolvimento das grandes companhias. Contudo, em 1992 a Apocalypse Ltd fecha portas e o arco de “Marshal Law”, que nela havia sido iniciado (“Super Babylon”, inserido na antologia “Toxic!”), acabaria por ser concluído na Dark Horse.
Ainda no mesmo ano, a série de Mills e O’Neill acabaria por desenhar um círculo perfeito ao regressar aonde tudo começou – à Epic Comics – para um crossover com “Pinhead”, de Clive Barker, em 1993, mas foi sol de pouca dura pois em 1994 a personagem regressou para a sua última história a solo: “Secret Tribunal”. A partir daqui a personagem ainda fez algumas aparições em crossovers (na Dark Horse e Image) mas, no que toca a uma série de BD própria, nunca mais voltou a acontecer.
Agora, passados 26 anos desde a sua primeira aparição, uma edição Deluxe é publicada pela DC Comics (que adquiriu os direitos das histórias), encontrando-se nela quase todas as aventuras em BD desta personagem (salvo os mencionados crossovers): “Fear and Loathing” (Marshal Law #1-6), “Marshal Law Takes Manhattan”, “Kingdom of the Blind”, “Hateful Dead”, “Super Babylon” e “Secret Tribunal”.
A acção desenrola-se maioritariamente em San Futuro, uma versão futurista de San Francisco, após grande parte da cidade ter sido devastada pelo sismo que ficaria a ser conhecido na História como “The Big One”. Nesta versão distópica do mundo, a ciência dedicou grande parte do seu trabalho à criação de super-seres, sendo hoje capaz de providenciar poderes ao Homem adulto comum e, também, “cultivar” in vitro seres humanos a fim de possuírem poderes desde a nascença. Os segundos são considerados o futuro dos super-heróis.
À semelhança do que Alan Moore estava a fazer em “Watchmen” (começou a ser publicado um ano antes), também Mills se debruçou sobre a desconstrução do super-herói, mas de uma forma completamente distinta. Moore pegou no tema debruçando-se sobre vigilantes, pessoas comuns que vestiam collants de noite para patrulhar as ruas e livrá-las do crime. Eram, em todos os níveis, seres-humanos sujeitos aos mesmos perigos que todos os mortais, todos menos um – uma excepção que dá pelo nome de Dr. Manhattan; mas mesmo Manhattan nos surge mais como um deus entre os homens do que como um super-herói. Em “Marshal Law”, Mills explora mais o conceito de ser “super” e re-imagina todo um mundo agora povoado por indivíduos assim e, surpresa das surpresas, é bastante diferente do imaginado pelo universo tradicional do género.
Podemos começar pelos veteranos de guerra. Um governo com capacidade de dotar os seus soldados de super-poderes jamais desperdiçaria este “talento”, munindo assim as suas tropas a fim de combaterem nas guerras vindouras. Tal acontece e resulta. Porém, um dos maiores problemas desta prática consiste no regresso a casa destes heróis, um regresso que se prova impossível para a maioria deles que, transtornados e sentindo-se “anormais”, enveredam por uma vida pautada pelo caos. É aqui que entra Marshal Law, um polícia cujos métodos de ultra-violência são os mais funcionais na caça a estes “super-heróis”. Claro que, ao passar pelo tema da guerra, Mills não podia perder a oportunidade de atirar algumas farpas ao assunto, particularmente em “Fear and Loathing” e “Marshal Law Takes Manhattan”, onde salienta o papel grotesco assumido por determinadas instituições governamentais que não impõem limites para levar os seus objectivos avante.
Noutro campo temos os super-heróis que são a inspiração do povo, como é o caso de Public Spirit (inspirado em Superman), que trabalha a sua imagem como a de sendo um Messias, um salvador. Como ele há outros que surgem como os protectores da justiça e da verdade, mas Marshal Law vê através disso e sabe a quantidade de tretas que estão por detrás do que apregoam. A natureza corrupta do ser humano não é surpreendente, por isso não surge como estranho imaginar que muitos destes heróis, estando num patamar acima em termos de poder, acabem por se cegar com o mesmo. Law sabe disso e tem em Public Spirit o seu inimigo número um, não descansando até o desmascarar como a fraude que é. Este arco, inserido em “Fear and Loathing”, é um arco onde se nota especialmente a raiva do autor – directamente espelhada no protagonista – em relação à divinização dos super-heróis
Mills também salienta – e bem – a ironia que existe em alguém apelidar-se de herói quando os perigos são perto do inexistentes. Muitas destas personagens não sentem a dor e, os riscos a que estão expostos, acabam por ser irrisórios. O povo neste mundo acaba assim por esquecer os verdadeiros heróis, aqueles que arriscam constantemente as suas vidas em prol dos outros. Claro que isto funciona melhor neste universo criado por Mills e O’Neill, pois todos sabemos que no género clássico do super-herói estes colocam constantemente a vida em perigo e até os seres mais poderosos como o Superman já perderam a vida em defesa do planeta. De qualquer das formas, percebe-se cristalinamente a mensagem que o autor quer passar em relação a este tópico.
Também as diferenças a nível sexual são mencionadas, algo que sempre “escapou” a este género. Aqui é bem focado que – por exemplo – personagens que voam não podem ter sexo com seres humanos normais, as suas fisiologias são incompatíveis podendo resultar na morte dos segundos.
Por esta altura já é mais que tempo de nos focarmos neste agente da lei que se tornou o maior pesadelo dos super-heróis e tentar perceber em que consiste este antagonista. Afinal de contas, quem é Marshal Law? À primeira vista, poderá ser estranho que Law nos surja também com uma veste de guerra que omite a sua identidade; é irónico que o maior inimigo dos heróis se vista como eles, ainda que o seu gosto recaia mais numa aparência de polícia fascista com tendências sadomasoquistas. Nesta fatiota, onde o cabedal predomina com uma série de mensagens escritas (nomeadamente nas solas das botas para os “heróis” lerem quando estiverem a levar com elas nas trombas), há uma particularidade que chama muito a nossa atenção: o arame farpado que ele usa à volta de um dos braços. Podemos dizer que se trata apenas de uma questão estética mas é mais que isso; o arame farpado está lá para o magoar constantemente, para nunca o fazer esquecer de onde vem o seu ódio pelos super-heróis, para o lembrar que ele já foi um deles.
A fim de justificar esta sede de vingança era preciso termos um passado deste calibre: ou algum herói havia morto a família de Law ou então ele já tinha sido um dos que caiu na ilusão, um dos que acreditou em tempos neste novo sonho americano e que se alistou prontamente para ser um dos heróis do seu país. Esta desilusão e vergonha nunca o abandonam, resultando num excessivo uso de violência que rapidamente se tornou a sua imagem de marca. É verdade que para combater alguém com super-poderes a violência terá de ser equiparada, mas Law vai sempre mais longe do que é preciso.
Não deixa de ser engraçado que a editora de BD – a DC Comics – que é o alvo de maior sátira em “Marshal Law” acabe por ser precisamente a editora que comprou os direitos das histórias e a publicou orgulhosamente, agora nesta edição Deluxe com 480 páginas. E se “Fear and Loathing” é um thriller com o Superman como alvo principal (tinha de ser o primeiro), “Kingdom of the Blind” é com o Batman e “Super Babylon” com a Justice Society of America (com a adição do Captain America e do Bucky).
A sátira ao Batman em particular deve ser a mais sórdida e macabra história de “Marshal Law”. Mills e O’Neill pegaram no conceito do vingador negro e levaram-no a outros níveis de obscuridade. Se Batman é muito diferente de Superman, essa mesma diferença teria de se fazer notar entre “Private Eye” (Batman) e “Public Spirit”, algo que se reflecte no facto de Eye ser o único herói que Law não abomina, havendo até alguma identificação entre eles, uma vez que há sua semelhança também Eye é um vigilante que – à primeira vista – elimina a escumalha de San Futuro. Claro que nem tudo o que luz é ouro e Law irá descobri-lo não só às suas custas. Além do trabalho gráfico excepcional de O’Neill, Mills também não lhe poupa elogios no que toca a ideias para as histórias. Nesta, em particular, foi O’Neill o responsável pela hilariante relação entre Private Eye e o seu mordomo, bem como alguns dos seus fantásticos engenhos – o carro de Private Eye consegue atropelar alguém, cortando e cosendo-o posteriormente.
Porém, nem só a presença da DC Comics se faz sentir, a Marvel também não escapa, mesmo estando por detrás da edição original – nem de outra forma podia ser. “Marshal Law” não se tornou propriamente a ideia que Mills e O’Neill haviam vendido à editora, mas quer tenham gostado ou não, esta nunca se pronunciou contra. Além da já mencionada participação das versões do Captain America e do Bucky temos a hilariante “Marshal Law Takes Manhattan”, onde um grupo de heróis (sátira aos Avengers, Fantastic Four e até ao Silver Surfer) se encontram numa instituição para doentes mentais. O final, que foi talvez dos momentos de maior gargalhada, foi também da autoria de Kevin O’Neill, que usa as características familiares dos heróis para a cena de suicídio conjunto mais hilariante da história dos comics. Aliás, tal como todas as boas sátiras, é preciso conhecer bem o sujeito a satirizar e tanto Mills como O’Neill demonstram ter o trabalho de casa bem feito. Todas as histórias têm uma série de pormenores deliciosos sobre as versões originais em que são inspiradas, tal como a piada que Law faz à versão do Green Lantern da JSA (Alan Scott) sobre a ridícula fraqueza que este tinha à madeira. Mas esta é apenas uma de inúmeras.
Ainda não saindo da Marvel, será que “Hateful Dead” deu nascimento à futura “Marvel Zombies”? Provavelmente não, mas ver os heróis mortos por Marshal Law a regressarem das sepulturas foi mais um grande momento desta série, principalmente pelo foco que dão no facto de não haver nada para além da morte, o que pressupõe que não existe qualquer tipo de castigo ou recompensa para a vida que se leva na Terra, o que alguns encaram como carta-branca para cometer as maiores atrocidades em mais uma interpretação dos conceitos do niilismo que desiludiria Nietzsche.
A encerrar temos “Secret Tribunal”, uma história mais voltada para o terror na ficção científica numa espécie de amálgama entre os dois primeiros “Alien’s”, mas com Marshal Law no lugar de Ripley. Uma das particularidades desta história é que, além da voz interior de Law, também seguimos a de outra personagem, um aspirante a super-herói daqueles criados desde a fase embrionária: o Growing Boy. Foi um acrescento interessante para nos dar a conhecer um pouco melhor em que consistem as ideias e sonhos de alguém pertencente a esse grupo, um grupo cujo destino foi forjado ainda antes de terem nascido.
No género dos super-heróis a abordagem ao crime sempre foi relativamente superficial, havendo algumas excepções que estão a aumentar com o tempo, talvez porque o género tem estado a acompanhar mais a idade dos seus leitores, mas isso é tópico para uma outra conversa. Em “Marshall Law” há claras menções ao papel que o Governo teve na criação destes monstros que são agora os super-heróis que povoam San Futuro – também eles foram inocentes corrompidos e com as suas vidas arruinadas. Nesse sentido, Law poderia demonstrar uma maior compaixão por estas personagens, mas tal não ocorre. Mesmo tendo noção que não são os maiores culpados – mas antes aqueles que os criaram -, Law não acredita na sua reabilitação e, por isso mesmo, só conhece uma maneira de resolver o assunto, acabando por cair também no mesmo erro cometido pelos super-heróis que tanto abomina; ou seja, também ele é por vezes um instrumento – sendo constantemente aldrabado pelo seu superior – e também ele ataca apenas o mal superficial, os sintomas, deixando a verdadeira doença, as entidades governamentais, de lado e impunes. Seria interessante ver uma história de Law que enveredasse mais a fundo por esse caminho, até porque é algo bem desenvolvido e espelhado na série, algo que Law conhece bem, mas cuja resolução é bastante mais complicada. Aqui é preciso salientar que, mesmo não partilhando simpatia por nenhum, Law apenas desmembra os super-heróis que seguiram o caminho do crime e um bom exemplo disso é a curta relação que ele acaba por ter com Growing Boy em “Secret Tribunal”, um jovem ingénuo cujas aspirações ainda são nobres e puras.
Mills continua um perito em massacrar os conceitos e ideais que abomina, doa a quem doer. Dotado de uma escrita estimulante e impregnada de um humor sórdido é um dos grandes mestres da ultra-violência. Aliado a Kevin O’Neill tornam-se numa dupla imbatível. O’Neill foi crucial a dar vida a este universo, com toda a estética gore e Punk, os vários grafites a tornarem-se parte integrante dos cenários, que dão uma vida sem paralelo a San Futuro, uma cidade onde há de tudo um pouco, incluindo casas de prostituição com super-heróis onde o sexo é a última coisa a ser vendida. Hoje em dia O’Neill dispensa qualquer tipo de apresentação, tendo alcançado fama mundial graças ao sucesso da sua parceria com Alan Moore em “The League of Extraordinary Gentlemen”.
Como não podia deixar de ser, “Marshal Law” gerou bastante controvérsia no mercado dos comics norte-americanos, tendo até sido banido de uma loja no Texas por ter um super-vilão a chutar um miúdo de San Futuro até Santa Monica. Mas, tendo em conta o facto de ter sido publicado sem ser vítima de censura, foi uma grande vitória para os autores.
No final surge a questão: passados 26 anos, “Marshal Law” continua tão actual como antes? Após a leitura parece seguro arriscar que a personagem envelheceu muito bem e que fará tanto ou mais sentido agora do que na sua altura (Law no cinema?). A deificação dos super-heróis continua e a situação actual do mundo – infelizmente – fala por si. Em relação à segunda parte, é particularmente triste que histórias como esta, entre tantas outras – Quino e a sua Mafalda vêm à memória – nunca fiquem datadas, sinal que a humanidade ainda luta contra os mesmos problemas, porque as pessoas serão sempre pessoas.
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