Megafone 5 @ CCB
Lisboa, 4 de Novembro de 2009.
Muitos foram os músicos, conhecidos, amigos e admiradores de João Aguardela que, no dia quatro deste mês acederam ao tributo ao músico, ou melhor, parafraseando o pai do próprio, a “uma homenagem à música”.
Na homenagem à música de João cabem e relembram-se ideias. O início do seu percurso no Rock Rendez Vous, o posterior apego e dedicação à portugalidade e tradicionalismo que sempre se propôs estudar e o intrusamento com uma modernidade experimental, avant garde, que explorou os solos da electrónica (Megafone), da pop (Sitiados e Linha da Frente) e até do fado (A Naifa).
Aguardela tinha a complexidade simples das mentes criativas. Nele havia o respeito por uma tradição; mas de um certo tradicionalismo não-estático, porque nele se baseava para ir mais além, para juntar novas formas, tendências e contemporaneidade, para desenterrar os prantos e destinos mais intrínsecos do nosso contexto musical passado e os reanimar expandindo luz, de modo a chegar às novas gerações com a mesma essência e naturalidade com que iam (e continuam) chegando outras derivas.
Aguardela era um activista convicto. Dava a cara pela tradição, pelos costumes, pelas vivências que eram as suas mas eram de todos nós, pelo seu público (“50% do espectáculo somos nós e 50% é o público”, evocava na RTP, após passagem de um live de Sitiados) e por causas sociais e ideológicas, como o fez com o declarado repúdio pelas organizações de extrema direita.
Neste dia sentiram-se emoções, impulsionaram-se vontades adormecidas, lembrou-se uma referência cultural tantas vezes esquecida, tão poucas vezes valorizada. Mas, e isso não convém esquecer, serviu e continuará a servir, através da Associação Megafone e com o apoio e parceria da Sociedade Portuguesa de Direitos de Autor (SPA), para fomentar caracteres artísticos seminais ao nível nacional.
Porque, ”quem ficará para escutar este país sitiado? E quem fica para tocá-lo?” (Rui Lage). A noite de dia 4 de Novembro talvez seja o sujeito introdutório para a resposta.
A toque de sampler ouvem-se aldeias perdidas de um megafone visitante e curioso e a ideia de um gravador que ia em busca das sementeiras e canções de berço, de uma raiz inextinguível mas abandonada.
Eis que a “música para uma nova tradição” chegou.
Com a difusão no ecrã das ideias e trabalho de João Aguardela nos colectivos que integrou e a consciência de uma liberdade artística e apaixonada simbolizadas na projecção de um pássaro livre e de um coração gigante, bem como no desempenho performativo do grupo de rua Artelier, de branco vestidos, que trouxeram a anímica vibracional e cénica certas para a homenagem, interiorizamos o início dos predicados ajustados para o complemento ou resposta certas.
A colocação multi-instrumental, de vários músicos de raiz acentuadamente tradicional/popular, de contornos interventivos, foi o primeiro predicado a fazer sentido à homenagem. Os Gaiteiros de Lisboa assumem também uma identidade única no panorama actual. Marcam-se em abono do uso dos instrumentos mais ligados a essa tradicionalidade, concebidos pelos mesmos, desde o tambor de cordas e clarinete aos tubarões, entre outros. Uma característica que renova o interesse do projecto será o facto de assumirem uma atitude experimentalista em relação às sonoridades permanente. «Lenga Lenga», «Nós aqui vós dahi» e «Canto de Trabalhos» ficam no ouvido.
O grupo almadense OqueStrada prosseguiu o debuxo. Marta Miranda tem uma luminosidade especial, única, funde-se entre improvisação e atrevimento, a simbiose sai à desgarrada ou em fado sentido, em ludismo circense ou estrangeirês («Killing me Song»). São destemidos e inovadores, graciosos e saudositas. Neles vagueia aquela sensação de emigrante despojado a abraçar um número significativo de lados telúricos da vida e da simplicidade artística. Desde os subúrbios, às tascas de fado, da revista às velhas salas parisienses. O certo é que eles e ela, Marta Miranda, exibem algo que já absorvemos nos filmes à antiga ou das recordações mais remotas e ainda assim soam-nos a algo de fresco e renovado.
OqueStrada doseia teatro e imaginação, conceptual e anti-conceptual, um saxofone, uma contrabacia, um Toni de Paiva (convidado) do fado genuíno e bairrista.
A que se assemelha? A mais dois predicados para finalizarmos a resposta. Inovação e globalização.
Retêm-se «Oxalá te Veja», «Agarrem-me» e «Killing me Song».
A dupla que se segue é já bem conhecida de todos nós. Dead Combo. Esses mesmo que conseguiram, como poucos, assumir-se com a identidade que criaram. Como músicos envoltos numa áurea cinematográfica notável, que nos fazem viajar de música em música entre uma e outra cena, um e outro filme.
Tó trips (guitarra) e Pedro Gonçalves (contrabaixo, guitarra, melódica, kazzoo) dispensam apresentações.
Mas não deixa de ser importante a nota pelo considerável trabalho, também ele com forte influência nos filmes, nossos, de décadas antigas cheinhos de personagens e actores carismáticos como Vasco Santana, Beatriz Costa ou Ribeirinho.
«Versos de amor», «Janela», «Quando a alma é pequena» e «A menina dança» fixam-se e deambulam, em acordes, pela memória.
É com A Naifa, o último projecto de Aguardela, que as emoções e o real motivo deste (re)encontro intensificam a ambiência já acomodada nos recantos do auditório do CCB.
Sandra Baptista (baixo, outrora Aguardela), Mitó aka Maria Antónia Mendes (voz), Luís Varatojo (guitarra portuguesa), Paulo Martins (bateria) deram continuidade nesta noite à dinâmica Aguardela para A Naifa. Dinâmica essa que continua a assentar na portugalidade, mas uma portugalidade requintada que João sempre mostrou, de outros modos, como por exemplo com Linha da Frente. Uma portugalidade atípica que vive, quase a tempo inteiro, num fado de sonoridade contemporânea, que só o mais céptico modernista não se dignará compreender ou escutar.
“O João tinha muitos amigos” diz Mitó e por isso alguns também subiram, intercalando funções com os elementos fixos de A Naifa, ao palco. Samuel Palitos, integrante dos quatro projectos de Aguardela, foi um deles.
Toada rítmica de arremetidas sentimentais e profundas, bela, popular, futrica. Projecto acima de tudo de música portuguesa.
Comovem «Filho de duas mães» e «Pequenos Romances», lembramos facilmente «Senoritas» e «Um Feitio de Rainha».
Todos os predicados reunidos. E agora as respostas às questões iniciais. ”Quem fica para escutar esse país sitiado”? Todos nós que assistimos e outros mais que virão.
“E quem fica para tocá-lo”? Estes mesmos, que tocaram nesta noite, e mais que virão.
Fotografia de Fábio Teixeira.
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