Michel Gondry

O homem que ousa sonhar alto.

A propósito da estreia de “The Science of Sleep”, que finalmente chega às salas de cinema, propomos despertar as vossas mentes para a descoberta de uma das mais interessantes figuras do cinema actual, o realizador Michel Gondry.

Sem mais demoras, vamos entrar na Gondry Zone…

“I simply take an idea and keep pushing it to an extreme”.

Este é o mote do mirabolante francês, monsieur Michel Gondry, homem/sonhador/artista, que constrói os seus trabalhos à medida da sua imaginação.

Conhecemo-lo há já algum tempo, embora o nome talvez não crie uma sinapse imediata. É ele o realizador de vídeos musicais bem esgalhados, ao som dos quais já abanámos o esqueleto: «Human Behaviour» e «Bachelorette» de Bjork; «Protection» de Massive Attack; «Around the World» de Daft Punk e, para os The White Stripes, «Fell in Love With a Girl». Gondry procura trabalhar com artistas que respeite, que tenham algo a dizer, ou façam algo de original com a sua música. Em recentes declarações à revista norte-americana RES, Gondry revela-nos o seguinte: “Não tenho um método de trabalho, é algo que surge por acaso. Eu funciono de um modo muito desorganizado. Posso ter uma cassete em casa durante meses a fio e nem olhar para ela, até que um dia me dá na telha ouvi-la e depois penso «Meu Deus, tenho que fazer mesmo este clipe, tenho mesmo« e aí normalmente é tarde de mais. Infelizmente, nunca fui uma pessoa organizada…”

Foi com a sua segunda longa-metragem que o caótico e nem por isso menos genial Gondry fincou pé como um dos mais originais e irreverentes realizadores contemporâneos. Eternal Sunshine of the Spotless Mind estabeleceu firmemente a sua visão única e idiossincrática.

Eternal Sunshine of the Spotless Mind, ou comer queijo não é suficiente para curar os males do coração

Eternal Sunshine of the Spotless Mind, com Jim Carrey e Kate Winslet, combina os efeitos especiais carimbados “Gondry” com um argumento inteligente, da autoria de Charlie Kaufman (“Being John Malkovich”, “Adaptation”), com quem Gondry já tinha colaborado na sua primeira longa-metragem, “Human Nature”. Juntaram-se assim dois especialistas em labirintos mentais e voilá! Nasce uma história que é um autêntico Cubo Rubik sobre a memória e a identidade.

Para quem não viu (do que é que estão à espera para ir alugá-lo?), o filme gira à volta da possibilidade criada de se poder apagar convenientemente memórias dolorosas que nos marcaram. Posso dizer que se começa a construir toda uma história onde a geometria do espaço na mente corresponde ao tempo, com brilhantismo e sentido de humor. Graças a Gondry, conseguimos realmente ver  sentimentos, as ideias, as memórias e fantasias, normalmente de carácter efémero, mas que no filme ganham corpo, forma e tempo. Neste filme, Gondry conseguiu criar uma imagem do conceito “memória” em que as personagens viajam ao longo do filme por paisagens feitas de recordações e puzzles de recordações apagadas e revividas, em que nos perdemos com os personagens, entramos nas suas peles, vivemos as suas emoções. Eternal Sunshine of The Spotless Mind é arrebatador, simultaneamente sedutor, polido e ao mesmo tempo totalmente Gondry.

Há aqui uma enorme diferença relativamente ao seu filme de estreia, “Human Nature”. Esta reside numa maior liberdade de criação. Para Eternal Sunshine, o habitual storyboard foi abolido, as ideias, ao invés de já estarem estudadas, iam sendo concretizadas à medida que surgiam, muitas das vezes no próprio local de rodagem. Gondry quis deste modo libertar-se das limitações técnicas e de luz, implícitas à realização de longas-metragens: “Prefiro dar enfoque à interacção entre actores do que preocupar-me com questões meramente técnicas”, confessa à revista RES. Com este filme, Gondry percebeu que cada etapa precisa de um processo criativo, desde a escrita do argumento, passando pela repérage, até a representação, edição, música, etc… É essa a sua fórmula de evitar fórmulas feitas, inovar.

Aparentemente, o casting de actores para Eternal pode parecer insólita: Jim Carey, o cómico identificável pelas suas caretas de marca mais do que pela densidade de representação, e Kate Winselt, mais conhecida pelo seu papel no afundado Titanic. Mais uma vez Gondry prova a sua mestria e aversão a ideias pré-concebidas. Esta dupla de actores não podia ter sido melhor. “Gosto dos seus filmes (Jim Carey) porque consegue representar tão bem uma criança como um adulto”, diz ainda à RES. Comportamentos extremos que Gondry diz reconhecer em si-mesmo. Continua: “Quando faço um filme, procuro um espaço onde estas duas facetas possam existir lado a lado. Isto também acontece quando realizo clipes: eu não vou procurar ser uma das pessoas que entram no vídeo, mas sim um ponto em comum com eles. Isto também tem a ver com o tipo de artista com que consigo colaborar: nunca colaboraria com um actor muito directo e moderno, como James Dean, ou então com alguém que se leve demasiado a sério.”

Trips Digitais

Gondry é um curioso compulsivo e, como tal, não se contenta em ser apenas um realizador de clipes ou longas-metragens. Irrequieto, realizou mais recentemente um documentário sobre hip-hop, “Dave Chapelle´s Block Party”, lançado em Março deste ano, que inclui performances de alguns dos melhores artistas do género como Mos Def, Erykah Badu, The Roots, etc.. Mais uma vez, o irreverente Gondry consegue surpreender. Já sabemos que a sua temática fetiche é a mente humana e todas as suas nuances – sonhos, memórias, desejos – no entanto, consegue percorrer qualquer temática com a mesma superioridade técnica e criativa.

Gondry faz parte de uma nova geração de cineastas, emergente, que vive de autênticas interrogações do espaço e do tempo, enquanto tenta reproduzir o normalmente invisível ao olho humano, as estruturas da existência, através da cultura digital.

Um carneiro, dois carneiros, três… zzzzzzzzzzz
Mas qual é a ciência do sono??

Como é que se transforma uma história de amor – assunto mais que batido no grande ecrã – num filme brilhante? A resposta não é fácil, é… Gondry.

A história é a seguinte: Stéphane (Gael Garcia Bernal) apaixona-se por Stephanie (Charlotte Gainsbourg). Até aqui tudo certo. O problema é que Stéphane tem o condão de arruinar a todo o momento a potencial relação, porque sonha (literalmente) acordado, e acaba por ficar preso aos sonhos…

Aqui Gondry conseguiu o que há muito procurava – liberdade criativa total. “Quis pôr em prática tudo o que me passou pela cabeça, sem castrar a minha imaginação… Quero explorar o mais profundo possível o meu subconsciente”. O realizador continua a linha onírica e extremamente intimista, tão própria, conseguindo passar fluidamente e tranquilamente dos sonhos à realidade, animação frame a frame ao tempo real, facto a ficção… Bebeu inspiração dos surrealistas, nomeadamente Luis Buñuel, também de David Lynch, referências que serviram para construir o mundo sonhado de Stéphane.

Muitas das situações do filme são réplicas da vida de Gondry. Science of Sleep é só a obra mais autobiográfica de Michel Gondry até hoje (desta vez o filme foi inteiramente escrito por ele). Numa entrevista dada à revista RES, Gondry esclarece alguns dos momentos mais declaradamente pessoais como é o caso do fenómeno por si inventado e que intitulou de “realidade paralela sincronizada”. Este termo é utilizado por Stéphane para descrever aqueles instantes cruciais onde os mundos emocionais e psicológicos de duas pessoas colidem, de uma forma inexplicavelmente harmoniosa. Gondry explica que este foi um fenómeno criado para dar nome aos sentimentos que ele – Gondry – ressente quando é atraído por alguém. Amor à la Gondry, portanto. O realizador entra no filme sob a pele de Stéphane, que no fundo é o seu alter-ego, utilizando-o para canalizar toda a sua genialidade ao retratar as suas emoções, mundos imaginários e ideias estrambólicas.

Este filme é uma autêntica collage de técnicas diferentes, como a animação, forma mais adequada para expressar toda a fantasia dos sonhos, permitindo um maravilhoso espectáculo visual.

No entanto, o realizador não se considera obcecado pela forma: utiliza-a a seu favor, como mais uma via para projectar ideia atrás de ideia. “A animação é dos poucos meios que me permitem fazer uma relação directa entre o mundo e o cérebro. A escrita obriga a uma maior precisão e selecção das palavras que devem ser certeiras, enquanto que na animação o trabalho é mais ingénuo, verdadeiro, porque directamente ligada às emoções.  em bruto, sem cortes, sem racionalização, instintivo”. É óbvio o prazer que Gondry ressente ao trabalhar com as mãos, relacionando-as directamente às suas ideias, tornando o seu trabalho híbrido e pessoal. Alia uma tremenda imaginação a um poderoso domínio dos instrumentos que utiliza para filmar. O seu profundo conhecimento do mundo digital permite-lhe fazer conjugações de técnicas únicas. Gondry não tem medo de experimentar e manipular até chegar a um resultado estimulante.

Sendo este um filme altamente autobiográfico, a escolha de Michel Gondry para o actor principal tem uma justificação bastante plausível: “Gael é um dos homens mais bonitos do planeta”, diz, “e eu pensei: serei muito presunçoso ao escolhê-lo para me representar? A verdade é que esta escolha se tornou numa grandessíssima dor de cabeça pois tive que trabalhar o dobro no argumento para dar credibilidade ao facto de a Stephanie não lhe querer saltar para cima desde o primeiro encontro.” Hum…

É assim que Michel Gondry continua a remar contra-corrente, longe das fórmulas contemporâneas recorrentemente utilizadas no cinema actual, feitas de narrativas fragmentadas e cortes consecutivos de planos. Ao especializar-se em retratar as estruturas invisíveis da mente, ajudando-nos a visualizar mundos de sonho, revela estar sempre um passo à frente do seu tempo. Conseguir agrupar diferentes realidades numa só camada: o tempo real, e a realidade sonhada, imaginada, memorizada, numa só história, alternando-os ao longo de fascinantes planos. E Gondry fá-lo com uma ingenuidade de adulto-criança, que desenha a anarquia dos sonhos e das coisas que não se conseguem tocar…

Bons sonhos cor-de-burro-quando-foge.



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