Miguel Gallardo
Conversa com o autor/ilustrador espanhol responsável pelo livro "Maria Y Yo".
Inserido na IV edição do Ciclo de Cinema Espanhol está a apresentação de “Maria Y Yo”, um documentário baseado na obra homónima de Miguel Gallardo. O autor fez questão de comparecer à estreia e, mesmo antes de jantar, concedeu uma entrevista demasiado breve para um tema tão feliz. Gallardo fala de como a sua vida mudou a partir do nascimento de Maria, a protagonista da obra e sua filha, que tem autismo. Completo de boa disposição, conseguiu aligeirar as questões sensíveis, revelar o processo de construção do documentário e tornar-se a ele e às suas preocupações um exemplo a seguir.
Depois de editar o livro, “Maria Y Yo”, alguma vez pensaste que iria sair dali um documentário?
Nem sequer tinha pensado que iria fazer um livro. Como sabes a Maria vive nas Canárias, com a sua mãe. Então eu vou lá e passamos férias juntos. Eu ando sempre com os cadernos e desenho para ela e tenho assim um diário do que fazemos os dois. O livro é então um diário dessas férias.
Como surgiu a ideia de publicar esse diário?
Este diário é para mim, para a Maria e para a mãe de Maria. O que aconteceu foi a que a sua mãe gostou muito e os meus amigos acharam que era muito interessante. O que é bom é que o livro não é muito diferente do diário, não há muita intervenção. O livro começou de muito baixo e é um livro que no princípio nos leva a pensar ser sobre um pai com uma filha autista, e é um tema triste. Até que o lemos e vemos que é algo muito divertido. Eu encarreguei-me de contactar as associações de autismo e consegui que a editora enviasse livros para essas associações. Pouco a pouco “Maria Y Yo” foi crescendo e vamos para a quinta edição. Está traduzido em Francês, Italiano, Alemão e agora vai ser traduzido para Português.
Em 2009, através de uma amiga comum, que é a directora de um canal público em Espanha, apresentou-me ao director da película, Félix Fernandez de Castro, que me disse que tinha lido o livro e que se tinha emocionado muito. Pensava que era possível fazer um filme. A primeira coisa que eu lhe disse foi que estava louco. Disse-lhe que não conhecia a Maria, que não sabia como ela reagiria.
A ideia original sempre foi a de se fazer um documentário? Nunca se perspectivou um filme?
Eu não tinha nenhuma ideia.
Mas a proposta original era de um documentário, onde figurassem os dois, tu e Maria?
Sim, exactamente. Porque o que o Félix gostou no livro foi o tom. Não era um tom triste, mesmo sendo sobre o autismo: é um tom muito positivo, muito divertido. Para ele era um desafio fazer um documentário sobre algo que pensamos que é a incapacidade, mas que não vai ser, vai antes ser sobre a aventura de um par estranho, num resort das Canárias. Mas sempre se teve a ideia de um documentário. No entanto, é um documentário que, se não tivesse as entrevistas que tem, com a mãe de Maria e comigo, poderia ser uma película de ficção. Nós somos duas personagens.
Não houve o receio, da sua parte, de confiar a sua intimidade com a Maria numa equipa de filmagem, e no próprio realizador?
Bem, a primeira coisa que eu disse ao Félix, o director, era que a primeira pessoa que tinha que dar o consentimento era a mãe de Maria. Então falámos todos e decidimos que era uma aposta forte, em que nos íamos expor, mas que seria uma ajuda para muita gente. Chegámos ao acordo com o director de que durante o final cut nós teríamos o direito a dizer “isto não, isto não pode ir para o documentário”. É algo difícil de conseguir mas não estávamos dispostos a mudar. Perdíamos a nossa intimidade mas em troca podíamos aceitar o que saía ou não.
Uma narração fictícia sobre o autismo talvez fosse o caminho mais cómodo, mas o Miguel preferiu tornar este projecto pessoal. Virar o foco para a sua vida e a de Maria. Porquê esta lógica, de ficar dentro do livro?
Bem, eu tinha sido desenhista de banda desenhada durante 25 anos. O que eu faço é contar histórias, a seguir desenho. Mas o que eu gosto mesmo é de contar histórias, e a história da Maria é a minha história, é a história da minha vida. Que melhor história para contar do que essa? Mas eu também sou um desenhista de humor, eu conto comédias. Queria evitar que as pessoas tivessem pena de mim, ou da Maria, ou que pensassem “pobres, que mau, ter uma filha com autismo”. Esse não é o meu ponto de vista. O que eu penso é que de alguma forma tenho sorte e a Maria ensinou-me muitas coisas que eu não sabia. Por exemplo, a Maria mudou muitas coisas na minha vida, mas uma das que mais se alteraram foi a minha forma de desenhar.
De que modo se alterou o seu estilo de desenho?
É que agora desenho de uma forma muito mais simples. Devido ao que tenho feito, devido a estar sempre a desenhar para ela, porque tenho que desenhar muito rápido. O livro não está feito com um propósito. Não é que tenha pensado: “bem vou fazer um livro para ensinar as pessoas”. Não. Eu vou explicar a minha história e as pessoas pensem o que quiserem, eu explico a história como a sinto. Se as pessoas gostam, ainda bem. Se não, o problema é seu.
Como foi feita a passagem desse Miguel, o cartoonista e ilustrador atento e crítico à sociedade, para este novo Miguel, o ilustrador e criador de livros infantis e, finalmente, o criador de “Maria Y Yo”, objectos muito mais sensíveis e com uma causa muito forte por trás. Como aconteceu isto?
Bem, ter um filho muda-te. Creio que a vida te vai levando por sítios diferentes e tu, ou aprendes o que tens de fazer, ou mudas. Eu era da geração da BD underground em Espanha, nos anos 80. Da geração que se drogava, que bebia e que tinha muitos males. Há gente que se recorda de mim por isso, mas há muita gente que também se recorda de mim por ser o pai de Maria.
Sem dúvida. No seu blog tem uma legião de seguidores, de gente muito agradecida pelo teu trabalho, que se identifica com a tua situação. Sentes que conseguiste mudar algo nas pessoas?
Sim. É um livro que é dirigido para todo o mundo. Mas, de facto, quem o lê muito são pais de filhos autistas. Mas também conseguimos que pessoas indiferentes ao autismo lessem o livro. Mais que tudo, conseguimos que os fãs de BD leiam “Maria y Yo”, que trata um tema duro, um tema diferente. É um feito pelo qual estou muito grato.
Actualmente tens-te dedicado apenas a “Maria Y Yo”, ou existem já novos projectos no horizonte?
“Maria Y Yo” é um livro muito pequeno que veio a crescer muito, mas não de uma forma contínua ou organizada. O livro, que agora tem a película, vai crescendo como algo muito especial. Eu fiz um perfil no Facebook do documentário e, de repente, todo o mundo está a conhecer a Maria. Maria está-se a tornar numa espécie de heroína. Ontem fez anos e vê-se que as pessoas respondem, foram 145 pessoas que felicitaram a Maria. Está-se a converter num fenómeno muito grande, e através de Maria as pessoas entram um bocado neste mundo.
Então não sei do futuro, mas interessam-me muito as redes sociais, interessa-me muito a Internet…
Preocupa-se então com a divulgação
Não, eu não sou um divulgador. Eu sou um contador de histórias e sou um pai sobretudo, que é o mais importante. Eu explico a história da Maria; eu não sou um médico, não sou especialista, não sei coisas técnicas sobre autismo. Sou um pai, que comunica com a Maria, o que aparentemente é difícil. É isto que eu tento comunicar, que toda a dificuldade que as pessoas têm afinal não é assim tanta. Também se pode comunicar directamente através da Internet. Eu tenho um monte de diários sobre a Maria, e tenho ido pôr no Facebook parte desses diários. E amanhã haverá mais do livro publicado na Internet.
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