ModaLisboa Slow Rewind
As propostas da moda nacional para o Outono/Inverno de 2006
Foi em quatro dias apenas – de 17 a 21 de Março – que a mais importante semana de moda portuguesa teve novamente lugar junto ao Tejo, no armazém Terlis. Embora se internacionalize como Lisbon Fashion Week, a Moda Lisboa, ainda que na sua 24ª edição, não se pode arrogar a semelhante título na língua materna. Porque, apesar de uma tremenda evolução a nível logístico (tanto o público como o número de jornalistas nacionais e internacionais aumenta exponencialmente de evento para evento), revela requintes de adolescente. Para o bem e para o mal. Para a sedução das imagens e gestos interrompidos, e para a interrupção das imagens e gestos que ainda se podiam dizer.
Sob o tema Fast-Forward, como se este acontecimento se tratasse de uma cassete cuja fita importa avançar a todo o custo, se sucedeu este fim-de-semana prolongado, entre os desfiles e conversas de situação iniciadas para matar o tempo regadas a Moet et Chandon e envolvidas por um interior styling reminiscente de temas como a Fórmula 1. Poucas se revelaram as actividades possíveis dentro do armazém Terlis, para além do visionamento dos desfiles. Mais aliciante do que obter um penteado aerodinâmico à força de brushing e laca num dos stands patrocinadores, seria observar a Expo Trois. Esta consistia numa exposição itinerante de sweat-shirts customizadas por designers como Sonia Rykiel, Alexandra Moura, ou Miguel Flor, que a revisa francesa Dealer Deluxe promoveu numa iniciativa que, tendo por génese a solidariedade social resultante de um leilão, timidamente sugere a noção de que a moda não tem de ser necessariamente inócua e ensimesmada.
Num país desacreditado, este palco de criação nacional relativiza possibilidades comerciais, saldando-se, no final, eminente lucro para as colecções mais desinteressantes, traduzidas num fabrico em série desmotivado do frenesim que a arte deve acarretar, exibidas perante uma sala cheia de um público endinheirado e de low-culture, bastante interessado num imediatista plano de pronto-a-vestir e encabeçado por v.i.p.s bacocos fotografados por revistas não menos cor-de-rosa.
Porém, para compensar este referido marasmo criativo, alguns foram os designers que nesta Moda Lisboa se firmaram como excelentes defensores da sua classe. Pela dedicação, teimosia, arrojo, e brio na sua profissão. Claramente divisíveis em dois grupos – conceptuais e românticos – , espalharam-se pelos vários dias do evento como felinos que defendem a sua posição de superioridade ontológica.
Pendendo para o minimalismo tão apreciado pelos intelectuais escandinavos figuram Dino Alves, Alexandra Moura, Sara Lamúrias com o seu projecto A Forest, e Lidija Kolovrat. Trabalhando as roupas em torno de um conceito do seu micro-cosmos, debruçam-se sobre a niilista ideia anti-moda que Rei Kawabuko tenta disseminar. E resulta.
Highlight da noite de quinta-feira, o desfile de Dino Alves, consagrado enfant terrible lusitano, desafiou pré-concepções acerca das barreiras entre artes visuais, performance, e moda. Com fundas olheiras escondidas dentro de máscaras de tule, lantejoulas, e renda, envoltos em jerseys de viscose, malhas elásticas, e marrocains de seda em pretos de vários tintos, pontilhados de um azul noite e de correntes de metal, os manequins assemelhavam-se a “sombrias despovoadas personagens do assombro”, como diria Natália Correia numa antecipação do look hardcore dos Locust, em quem Dino se parece ter inspirado.
Dentro desta linha orientadora foi a colecção de Alexandra Moura, discípula de Ana Salazar que superou a mestre. Numa restrita paleta cromática, unicamente raiando o cobre e o negro, saias-anémona, masculinos bombers com inesperados volumes na parte de trás e que conferiam aos modelos um ar de tartaruga apocalíptica, saias-calça com o cós ligeiramente acima dos tornozelos, e botas minuciosamente esburacadas coexistiam em perfeita harmonia com camisolas de malha estruturalmente arquitectadas, mangas de 90cm cortadas em viés, saias até aos joelhos com folhos de lã, e franzidos que brotavam de camisas como escuros leques ou barbatanas. Dotando as modelos de um penteado como o da Princesa Leia do Star Wars, foi conseguido um look provável numa futura guerra hi-tech entre anfíbios e humanos. A vencedora foi, claro, a designer.
Estreante e não menos talentosa apresentou-se Sara Lamúrias no espaço LAB, reduzido e destinado às mais jovens promessas da moda nacional. Tendo como pano de fundo projecção de vídeo, exibiu menos de uma dúzia de coordenados evidentemente frutos de um imaginário de jogos de computador retro, como o Spektrum, e da imagem do sinal de fim de emissão televisiva. Camisolas, luvas de boxe, pins gigantescos com o sinal on e off, tudo em lã, saias que são novelos multicolores dobados paralelamente nas ancas, e máscaras também de lã constroem super heróis dominados por uma cultura pop que já há sete anos os Daft Punk anunciavam em videoclips.
Mais feminina e apolínea, conquanto que igualmente conceptual e minimal, é a a colecção de Lidija Kolovrat, essa artista que, sendo tão mais do que uma designer, foi a autora de um dos guarda-roupas mais bem conseguidos da História do Cinema Português, n’ “A Costa dos Murmúrios”. Não escondendo usar como paradigma de perspicácia as criações de Comme des Garçons, as suas saias-anémona e os seus reconstruídos tailleurs pontilhados de prata e sobre collants turquesa de plástico perfurado não espantam, mas atraem. E a choramingas banda sonora só parece auxiliar a fazer-nos sonhar com uma Evita do filme de Margarida Cardoso, mas urbana, que se move como um flamingo mas usa boné com acabamentos de cetim.
Na dimensão oposta e tão válida quanto esta referida, posicionam-se quatro nomes que, mais comerciais, primam pelo requinte, delicadeza na confecção, rigor no corte, sensibilidade na escolha das cores, e exigência na qualidade dos tecidos. Imbuídos de um classicismo que cruza as declaradíssimas tendências vintage com elementos iconográficos da cultura popular portuguesa, Story Tailors, Nuno Baltazar, Luís Buchinho, e Story Tailors, Nuno Baltazar, Luís Buchinho são aplaudidos pelo público como os artesãos do romance.
Proposta LAB, os Story Tailors, dupla assaz interessante, já que honestamente subversiva, abriram oficialmente a Moda Lisboa. E da melhor forma – aliando a paixão de fazer roupa perfeita a nível técnico e deliciosa a nível visual e emotivo. A partir do “Toiro Azul”, um conto alentejano sobre uma menina e um touro que percorrem o mundo em busca da felicidade, uma história dividida em três fases foi contada numa dúzia de coordenadas. Num mix de hospedeira dos anos quarenta, à força de uma experiência de volumes contrastantes que simulam cinturas finas em sarjas de lã vermelhas, e de Nossa Senhora pós-11-de-Setembro que se equilibra de forma exímia em cima da sua santidade e pumps, vestida de cetim duchesse, organza, e jacquard de seda azul e verde, João Branco e Luís Sanchez apresentam o melhor desfile desta 24ª edição da Moda Lisboa, augurando-se-lhes um futuro promissor aquém e além fronteiras, como a menina do seu conto.
Não arriscando muito ao seguir a tendência ladylike, Nuno Baltazar conjuga camisas de laçada, saias-túlipa, luvas altas de cetim, e, restringindo-se ao preto, champanhe, beringela, e roxo, faz um hino aos anos quarenta, à recessão do pós-guerra, e à única Diva nascida em solo português – Amália. Com O Melhor de Amália como tabula rasa a partir de onde tudo se insere, vestidos de cetim, cobertos de pele de marta e raposa, a lembrar áureas e glamourosas noites, são exibidos por mulheres que deixam de ser simples manequins para ouvir os aplausos de quem assiste ao desfile. Mas note-se bem que essas palmas não se dirigem à sua beleza esfíngica, antes à teatralidade com que vão personificando Amália através dos vestidos de shantung de seda preto, quase fac-similados dos da fadista, que envergam em conjunto com faixas presas com pregadeiras que são, de facto, corações sagrados. Sem qualquer inovação, Nuno Baltazar faz a proeza de conseguir arrancar uma ovação em pé a um público que, mais do que apreciar o chique da sua colecção, teve no armazém Terlis a aparição de uma Miss Barco Negro 2006.
Num tom menos trágico começou o desfile que encerrou este evento – ao som de Big Mouth Strikes Again, dos Smiths. E se se vislumbram coordenados, ora masculinos, ora femininos, em champanhe acetinado, cortes rígidos e impossivelmente mais retro, pincelados a dourados e castanhos, e subitamente uma plateia esfusiante, isso só pode significar que se assiste a Alves/Gonçalves. Considerados os guardiães do Santo-Graal do bom-gosto (como se o mau gosto não fosse gosto também), mantêm uma clientela fiel e a sua tradição de condensar intemporalidade, coolness e qualidade em peças que poucos recusariam ter no closet.
Como nota final, quiçá pedida pelo inconformismo do Morissey – neste último desfile sucedeu o público ter uma reacção bastante vista em várias semanas de moda no mundo inteiro, e não raramente tida como favorabilíssima. Assobios, palmas e piropos aos modelos. Alguns jornalistas portugueses entenderam-no como falta de educação, um excesso. Fast-Forward é um título que remete para velocidade, que implica desafio. Perante isto, se o futuro não é agora mas um desejo, não parece plausível tentar refrear reacções espontâneas como a que o público teve, ou ostracizá-las somente por não se enquadrarem dentro dos padrões estilísticos europeus tão tropicalmente ultrapassados por verdadeiras semanas de moda como a São Paulo Fashion Week, Murumbi Fashion Week, ou New York Fashion Week. Porque já o Morissey perguntava How soon is now?
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