Molly Burch | “First Flower”
Consistente e seguro.
Molly Burch é discreta e tímida, talvez também por isso o seu segundo longa duração tenha passado um pouco despercebido. Quando percorremos um pouco do percurso recente da cantora, parece que o acaso vai fazendo das suas e a cantora não se sente assoberbada por, por exemplo, andar em tour com a jovem sensação indie Lucy Dacus ou o guru Alex Cameron. Se o primeiro álbum tinha girado em torno de uma separação, quando a cantora se mudou de Los Angeles para Austin, este segundo exala Primavera e amor e marca o movimento inverso, quando a ela se juntou o seu ex-amor Dailey Toliver que voltou a ser actual amor e é o guitarrista da banda que já foi duo.
Confuso? Nem por isso, Molly Burch não é uma cantora linear, vem de uma família de gente dedicada ao cinema, cantava em segredo, para si, estudou jazz, começou por gostar de Mariah Carey ou Britney Spears, seguiu depois para Nina Simone e Billie Holliday e acabou por mudar de cidade para decididamente seguir a carreira. O desgosto de amor acabou por ser o maior motivo para a mudança mas mostrou-se um bom impulsionador para cinzelar uma vida completamente nova dedicada a apenas um objectivo criativo, depois de uma pausa para decidir o que queria de verdade. “First Flower” acabou por ser gravado na casa-estúdio de Dan Duszynski que, ironicamente, passava por sua vez pela separação amorosa que coincidiu com a criação do primeiro álbum da banda composta por bandas Loma, homónimo, por isso em todo o processo de criação há destruição e renascimento.
Molly Burch oscila entre a aparência frágil e as inseguranças que combate com a escrita de letras a que atribui, apesar de tudo, importância secundária, já que, como admite, a sonoridade e o modo como as palavras se adaptam à música são o seu modus operandi na construção das músicas. Seja como for, através desse ou qualquer outro modo de construção musical, “First Flower” é uma pequena pérola em que a maioria das faixas acontece versar sobre amor e admiração. Timidamente, Molly Burch introduz igualmente um tema que adjectiva de feminista, “To The Boys”, e que representa a resposta a todos os homens que sempre insistiram para que falasse mais e mais alto. Ao mesmo tempo é a libertação daquela fase da sua vida e o tema da libertação criativa em que a cantora se afirma de modo definitivo e diz aos rapazes que não vai falar como eles querem mas sim com a sua própria voz: I don’t need to scream to get my point across/I don’t need to yell to know that I’m the boss/That is my choice/And this is my voice/You can tell that to the boys. Molly, de facto, não precisa de gritar para que a ouçamos, dona que é de uma voz belíssima e invulgar, cujas inflexões e estranheza não permitem que lhe sejamos indiferentes e podem tentar-nos a aproximá-la das paisagens vocais e musicais de Angel Olsen ou Belle and Sebastian.
oscilando entre a doçura e o atrevimento, nadando tranquilamente num mar de sargaços, aproveitando cada desgosto para nadar mais longe
“First Flower” é um arrojado e arejado segundo álbum, consistente e seguro, apesar de a cantora assegurar querer ser mais assertiva e selvagem, como admite em “Wild”, um dos temas single deste trabalho: It’s in my nature to be guarded/I wish I was a wilder soul/I wish I was a wilder soul. Na realidade, não é preciso porque a intensidade que coloca em tudo o que diz ou faz, certifica-se por ela de que este é um dos mais sumarentos trabalhos discográficos da indie com laivos de pop e rock, apesar de percorrer paisagens sonoras em que podemos facilmente identificar sobejamente reconhecíveis influências. Do ponto de vista da produção, o trabalho de Dailey Toliver é irrepreensível e o contributo do baterista na construção das faixas traz ao sucessor de “Please Be Mine”, de 2017, uma maior riqueza e dimensão que se encontrava um pouco apartada daquele LP de estreia, mais próximo ou quase colado a influências musicais do rock dos anos 60 e sem delas se destacar com tanta personalidade como agora.
Ao seu segundo trabalho, Molly Burch traz consigo renovação, novos e bons ventos e seria redutor ver em “First Flower” apenas amor e rosas, elementos que existem profusamente tendo em conta o modo como a cantora se sente complementada em vários níveis pelo seu companheiro de vida e de música, isso é notório, por exemplo, no tema que dá título ao álbum: I like all of you/I like the things you say, the things you do/Every day I wake up, watch you as you go/You don’t have to tell me, baby/I know, I know. Noutra qualquer voz, uma coisa destas soaria a piroso mas a profundidade da voz de Burch não deixa que isso aconteça e, portanto, frases que podiam ser feitas soam de modo completamente diferente. Em quase todas as faixas, a cantora demonstra que o que gosta mesmo é de brincar com o imenso potencial da voz e o que é certo é que uma música parece conter dentro de si vários temas diferentes e as palavras às vezes perdem mesmo o seu significado, como um mantra. Aviso: pode ficar-se em hipnose.
“Good Behavior” é um excelente exemplo do universo actual de Molly Burch, algures entre a prepotência de sonhar querer ser melhor do que todos os outros, a segurança de isso ser virtualmente impossível e a contraditória e serena ansiedade de que basta apenas tentarmos o melhor que podemos: I think I want to be better/Better than you and all the rest/I don’t think that’s quite possible, oh/Let’s all just try and be our best. É este o espírito que parecemos entrever igualmente na fotografia que se encontra na capa do álbum, a tranquilidade que esconde um barril de pólvora, a simpatia que esconde a ansiedade, o desejo ocultado pelo receio da rejeição. No meio de todos esses temas e contradições, Molly avança e faz, o resultado é mesmo aquilo que é possível de acontecer com a fusão dos elementos que carrega consigo. Às vezes é candura, às vezes agressividade a que se segue arrependimento, pelo meio os desabafos do amor eterno, trágico, do conforto e salvação da alma presente no outro, como em “Without You”: You are my guiding light/How would I survive?/I don’t know what I would do without you by my side. No final, um tema muito próximo ao sentimento angustiante que é ouvir Angel Olsen nos píncaros do country e do blues, “Every Little Thing”, poderia ser insignificante mas é como se Burch ganhasse forças em navegar águas paradas, cantando com o seu melhor timbre de bluegrass a la Patsy Cline, amargurando-se pelo desgaste do corpo e a tristeza de ser responsável por todos os desgostos, seus e dos outros. Não soa totalmente a verdadeiro o sentimento, é uma quase hipocrisia formal mas a voz de Burch acompanhada por simples cordas sonhadoras é uma verdadeira surpresa e uma das melhores faixas do álbum.
“First Flower” é um grande passo desde o primeiro álbum de Molly, um salto qualitativo na produção e no investimento colocado no aspecto formal, oscilando entre a doçura e o atrevimento, nadando tranquilamente num mar de sargaços, aproveitando cada desgosto para nadar mais longe. Entre os momentos de exaltação amorosa e os arrependimentos do passado que ainda a assombram, Molly Burch aproveita cada peça para construir uma caixa de surpresas musical que poderia muito bem afastar-se de modo mais claro das suas influências, aproveitando-as. Apesar disso, é um admirável exercício de contradições, sólido e frágil, cheio de certezas que se desintegram logo a seguir, muito próximo do que representa ser-se pessoa, exaltando as delícias do estar com o amor da sua vida mas ao mesmo tempo não querendo afastar-se muito da costa, pelo sim pelo não. Quando Molly Burch perder em definitivo o medo, vai velejar à volta do mundo, para já navega em águas doces aproveitando as correntes favoráveis e até as desfavoráveis para colocar mais uma pedra no seu trilho de poldras.
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