mutu | Entrevista
"As pessoas identificam-se com as mensagens, sobre a sociedade rápida em que vivemos, a falta de tempo."
Foi em pleno Vodafone Paredes de Coura, pouco tempo depois da sua actuação no palco do Jazz na Relva, que conversámos com os mutu. Com os Kokoroko como som de fundo, falámos com o Diogo Martins (voz) e o Pedro Fernandes (sintetizadores e guitarra), sobre o álbum de estreia da banda, a incontornável música tradicional e os desafios que se colocam a nós, como sociedade.
RDB: Infelizmente não consegui chegar a tempo do vosso concerto, mas tenho ouvido o vosso álbum.
mutu: Foi óptimo!! (risos)
RDB: Mas essa é mesmo a primeira pergunta. Como é que correu? É um palco com muita particular.
mutu: Acho que foi bem aceite. O palco é numa zona tranquila e tivemos sorte, que São Pedro ajudou-nos e acho que a malta, àquela hora está de coração aberto, está relaxada, o pessoal já comeu. A nossa música é um bocado introspectiva, um bocado pesada, digamos assim, mas acho que a reacção foi positiva. A malta ficou!
RDB: Falem um pouco do vosso percurso. São uma banda nova mas, que como muitas outras estão a traçar aqui um percurso interessante pelos géneros que tocam – e já lá chegamos!
mutu: Nós somos um projecto que se iniciou por volta de 2018 e a intenção era criar aqui uma ligação entre o tradicional e a música mais contemporânea, jazz, eletrónica e rock minimalista. Demorou muito tempo para conseguir chegar uma certa identidade – e é o maior feedback que temos das pessoas é a identidade que nós conseguimos criar, e não foi fácil nos primeiros anos. Lançamos um disco em 2023 através do gnration que nos proporcionou uma residência artística chamada Trabalho da Casa entrar na casa e demoramos entre 2018 e 2020, 2021 a criar uma identidade que permitisse dizer “é isto que faz sentido”. A ideia não era criar música de rádio, mas sim contar algumas histórias em que possamos mostrar o que é que a tradição foi (e ainda é) e como é que a podemos envolver n naquilo que é uma musicalidade atual.
RDB: Uma das coisas que saltou à vista foi exactamente isso, notava-se ali uma identidade. Não soava àquela “banda nova”, igual a muitas outras. Para além disso parece-nos que que se nota também uma coisa que vem acontecendo com alguns artistas na música portuguesa – e depois pedimos a vossa opinião sobre isto – que estão a olhar para as nossas raízes tradicionais, elementos tradicionais da música, e lembro-me facilmente da Ana Lua Caiano, que anda a fazer umas coisas muito interessantes e diferentes das vossas, mas que na sua génese parte um bocado da mesma premissa. Partir de elementos tradicionais e depois acrescentar outras coisas. Ela também tem cuidado com as palavras, vocês também têm um cuidado com as palavras, feito de uma forma diferente e é isso que vos confere uma identidade. Concordam?
mutu: Eu acho que surge quase como uma necessidade para os artistas, podermos olhar para dentro para dentro para podermos exprimir aquilo que queremos, e obviamente fazer isso na tua língua acaba por ser mais fácil, estás a falar a tua língua, e se poderes nisso incluir as tuas raízes, acho que isso acaba por trazer uma nova dimensão e vou repetir a palavra “identidade” mas é isso mesmo. É tu teres algo que é genuíno que é mais único e não um projecto que soa a algo que já existe. Depois também te liberta um bocadinho das fronteiras dos estilos.
RDB: Num bom sentido vocês são difíceis de catalogar.
mutu: Sim, nós sentimos isso também. Quando começámos a compor tinhamos 14 temas gravados, fizemos uma residência artísticas no Gerês e dos 14 ficou um, que foi «A Ceifa», que ao longo de 2, 3 anos fomos trabalhando e dissemos: “OK, vamos começar então a produzir a partir daqui porque encontrámos a identidade que queríamos”. O que nós notamos na música tradicional, que o Diogo é que trouxe pelas suas raízes, já eu (Pedro), o João Vitor e o Nuno, que vimos mais do indie rock, do minimalismo, de tudo aquilo que foi feito nos anos 90 e anos 2000, mas o que notamos mais nesta parte do tradicional, é a palavra, como tu disseste e muito bem. São sempre mensagens muito fortes.
RDB: Ditas com palavras simples.
mutu: Muito simples. Não há complicação nenhuma ali. Não há nenhuma daquela poesia erudita, que às vezes até é difícil de interpretar, mas palavras simples que tocam a toda gente de forma muito singular, mas que muitas vezes eram difíceis de chegar ao público. E se calhar aquilo que sentimos com a música que nós sabemos compor, dentro do jazz, entre rock minimalista, dentro do indie, juntar a palavra e conseguir que a palavra sobressaia, a mensagem é muito mais fácil de passar e acreditamos que dessa forma conseguimos chegar a mais gente., com mais facilidade, porque há essa tal identidade, que muitas vezes é colocada de lado. A tradição num ponto, a electrónica noutro ponto, o jazz noutro ponto… Porque não tentar misturar de forma a que soe agradável a todos, e acho que é que nós conseguimos, e vê-se se calhar pelo público que vai certamente dos 18-20 anos, aos 40-50 anos.
A nossa visão é a forma de preservarmos a tradição. Acho que a tradição deve ser misturada com estes tipos de música e não termos vergonha, nem medo.
RDB: E voltando à palavra e em especial às vossas canções. «A Corda» funciona um pouco com um duplo significado; a corda que se estica e a necessidade de acordar. Há aqui uma ideia clara; uma mensagem que se quer passar.
mutu: De estrangular. Assim como a «Seita», que é uma seita que nós seguimos e se aceitares é mais fácil, não é? E nós temos isso. É o Diogo que escreve essencialmente as letras, fazendo estes trocadilhos para as pessoas interpretarem como metáforas, eventualmente, porque é assim que a música funciona muitas vezes. As metáforas estão sempre presentes e as pessoas interpretam à sua maneira, mas uma metáfora é simples. Se cada um interpreta à sua maneira passa a fazer sentido.
RDB: Falavam há pouco que da vossa residência no Gerês apenas “sobreviveu” uma canção. Essa canção mudou muito até chegar àquilo que é hoje?
mutu: Sim, ou seja, acho que foi a partir daí que nós assumimos mesmo o papel preponderante da música tradicional, ou seja, cá está, esses temas que foram criados eram um pouco mais electrónicos (n.e.: o Diogo entrou na banda um pouco mais tarde)e quando começámos a introduzir a tradição aí, foi uma batalha. Decidimos mesmo, vamos fazer esse esforço. Tínhamos a noção de que “isto vai demorar”. E demorou três anos. Entretanto meteu-se o COVID, íamos trabalhando, fazendo músicas em casa, lutando letras, escrevendo… A «Ceifa» é uma música tipicamente tradicional, não é? Com a cantiga da Ceifa na primeira parte e depois então estávamos a pensar: “OK, então vamos juntar música tradicional com música original, e foi de facto uma batalha até conseguirmos encontrar isto. Mas estamos super entusiasmados com o resultado.
E há um adaptar dos dois lados. Adaptar da tradição para conseguir encaixar e ficar harmonioso com a electrónica, porque há especificidades da música tradicional que têm de ser alteradas ou um bocadinho modificadas para que soe tudo bem.
RDB: Como têm corrido os concertos?
mutu: É o terceiro concerto e a sensação com que ficamos no final e do feedback das pessoas que vêm ter connosco, é que há uma aceitação geral, as pessoas gostam, não é propriamente uma música que as deixe indiferentes. É uma música, digamos, fácil de ouvir… A tradição é um pouco isso. Todos nós sentimos que fazemos um pouco parte dela e o facto de ser cantada em português, e ser uma música simplificada, não andamos com grandes virtuosismos, a música acaba por ter tempos mais arrastados… algo que nós fomos melhorando. Nós começamos a desacelerar as músicas, para que as pessoas pudessem entrar de forma natural e sentir que fazem parte do tema, que conseguem perceber as letras e perceber a mensagem.
As pessoas identificam-se com as mensagens, sobre a sociedade rápida em que vivemos, a falta de tempo.
RDB: São temáticas que reconhecemos e nos identificamos, mas para as quais continuamos um bocadinho apáticos…
mutu: Acho que não vamos mudar muito… Como diz a «Ceifa» há aqui uma certa culpa minha, culpa tua. Todos nós sentimos de facto que há uma culpa geral pelo que está a acontecer. A desertificação do interior, a massificação das grandes cidades, da poluição, de termos 2-3 trabalhos, de não pararmos, de trabalharmos ao Domingo de manhã à noite. De termos redes sociais, o WhatsApp funcionar 24 horas por dia, o email consultado a qualquer hora. Os próprios gadgets que usamos como os relógios, em que recebemos uma vibração para nos alertar que recebemos qualquer coisa… qualquer coisa de quem? É de qualquer pessoa, do trabalho, de um amigo, e parece que tens de dar uma resposta na hora, porque se não dermos estamos sempre em falta.
RDB: Moral da história: abrandemos, escutemos e desfrutemos o que vai acontecendo à nossa volta, com os mutu como banda sonora.
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