“O Amante”, de Marguerite Duras

“O Amante”, de Marguerite Duras

Relato exasperado de uma paixão inquieta

O vintage veio de mansinho e instalou-se para ficar uma bela temporada. Depois da moda, da decoração ou da arquitectura, chega a vez da editora Asa apanhar a boleia e presentear-nos com a “Colecção Vintage Romance”. A Somerset Maugham – “O Véu Pintado”, “O Fio da Navalha” e “Servidão Humana” -, Edith Wharton – “Sono Crepuscular” -, Henry Miller – “Plexus” e “Sexus” -, Amos Oz – “A Terceira Condição” – e Milan Kundera – “O Livro do Riso e do Esquecimento” – junta-se agora Marguerite Duras, através da edição de “O Amante”, o seu livro mais autobiográfico.

Logo na primeira página, e como que para nos mostrar que não estamos perante um daqueles livros onde reina o erotismo ou o sexo desenfreado, o mapa da sofreguidão é-nos revelado: “Muito cedo na minha vida foi tarde de mais. Aos dezoito anos era já tarde de mais.”

“O Amante” narra um episódio dos tempos de uma adolescente, filha de colonos falidos na Indochina francesa, e da sua iniciação sexual aos quinze anos de idade com um homem dez anos mais velho. Porém, a relação de forças é aqui invertida: será sempre a adolescente a exercer a dominação, seja pela negação do amor, pela condução do prazer ou através do saciar do desejo: “Não havia que atrair o desejo. Ele estava naquela que o provocava ou não existia. Ou estava lá desde o primeiro olhar ou então nunca existira. Era a inteligência imediata da relação de sexualidade ou então não era nada. Isso soube-o eu antes do experiment.”

História da própria escritora, é também a narração de um amor proibido como forma de escapar à claustrofobia familiar e à sua derrocada, a um envelhecimento precoce que, desde muito cedo, se começou a manifestar: “Agora vejo que muito jovem, aos dezoito anos, aos quinze anos, tive esse rosto premonitório daquele que ganhei depois com o álcool na meia-idade da minha vida… Tudo começou para mim desta maneira, por este rosto clarividente, extenuado, estes olhos pisados adiantados aos tempos, aos factos.”

Partindo de personagens reais e de acontecimentos factuais, Duras escreve de uma forma tão transcendente que as personagens surgem transfiguradas e, a certas alturas, quase desfiguradas. O amor apenas aparece a espaços, imerso numa solidão e numa tristeza com uma imensidão de perder de vista, onde o prazer é infinitamente triste. Ao mesmo tempo que a sexualidade é descoberta, desde logo a narradora pressente o seu esgotamento: “De repente sabe, ali, nesse instante, sabe que ele não a conhece, que nunca a conhecerá, que não tem maneira de conhecer tanta perversidade.”

É também a história de uma família em ruínas, partilhando uma miséria material e uma estranha afectividade: a mãe caminha para a loucura embalada por uma desgraça financeira e moral; o irmão mais velho representa a crueldade e a malícia, desbaratando a fortuna familiar entre a droga e o jogo; o irmão mais novo é a figura mais frágil, e aquela que une a narradora à sua família, uma narradora carregada de espírito enigmático que alterna a narrativa entre a primeira e a terceira pessoa, como se precisasse desta última quando o tom é de auto-censura.

É em “O Amante” que Duras revela a sua paixão pela escrita, profissão que irá professar até ao fim dos seus dias: “Quero escrever. Já o disse à minha mãe: o que eu quero é isso, escrever. Não há resposta da primeira vez. E depois pergunta: escrever o quê? Digo livros, romances. Ela diz asperamente: depois do curso de matemática escreves o que quiseres, já não tenho nada com isso. Ela é contra, não é digno, não é trabalho, é uma brincadeira – dir-mo-à mais tarde: uma ideia de criança.”

Poderoso, solitário e imensamente triste, “O Amante” permanece para a literatura como um relato exasperado de uma paixão inquieta.

Factos

“O Amante” venceu o prestigiado Prémio Goncourt no ano de 1984.

Em 1991, o livro foi adaptado ao cinema pelo realizador francês Jean-Jacques Annaud.



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