“O Capitão”, de Robert Schwentke
Violento e deslumbrante.
Robert Schwentke transfigura-se, depois de realizar nos Estados Unidos sobretudo filmes de cariz comercial. Formado em realização pela escola de cinema de Los Angeles depois de ter cursado Literatura Comparada e Filosofia, começou a carreira na Alemanha mas logo tentou a sua sorte em Hollywood. A aposta foi ganha mas o realizador volta agora à sua terra natal para mudar o jogo novamente e fazer alguma coisa de diferente – é o próprio que afirma que se cansa de fazer sempre as mesmas coisas.
Entrar na sala de cinema sem saber nada sobre “O Capitão”, o novo filme do realizador alemão, tem a vantagem de se poder chegar ao final desconhecendo que o argumento tem fundamentos de verdade, é baseado em documentação da época. Co-produzido entre a Alfama Films, de Paulo Branco, a Filmgalerie 451 (Alemanha) e a Opus Film (Polónia), venceu o prémio de Melhor Fotografia no Festival de Cinema de San Sebastián e vários prémios no Festival Les Arcs em 2017.
Se estão a ler isto agora, é possível que uma parte do efeito surpresa se desvaneça mas nada pode preparar o espectador para o colosso cinematográfico que é “O Capitão”. Resumidamente, conta-se a história de Willi Herold, um soldado raso alemão que, a duas semanas do final da Segunda Guerra Mundial deserta e toma, um pouco por acaso, a identidade de um alto oficial do exército alemão (escapando, deste modo, ao destino certo dado a desertores e ladrões naquela altura).
“O Capitão” mostra-nos um outro lado da guerra, aquele de que muitos não querem ainda hoje falar
Para além da fotografia e de um preto e branco belíssimos, o filme vem trazer para a ribalta e envolto em polémica um tema que ainda hoje causa celeuma na Alemanha. De certa forma, os crimes cometidos no final da guerra não são admitidos com toda a clareza e em “O Capitão” é mostrado precisamente o oposto, apesar de personificado num Willi Herold algo picaresco e, certamente, tudo menos um herói. De repente, um cidadão comum sem patente e participação na guerra pode e deve ser acusado dos mesmos crimes que, segundo se acreditava, apenas os SS teriam cometido. É, no fundo, uma história de sobrevivência individual que acarreta consigo as vidas de outros homens, igualmente desertores, e a pressa que as altas patentes do exército tinham em fazer desaparecer as testemunhas da guerra, evitando que caíssem nas mãos dos aliados.
“O Capitão” não se poupa a nada e não tem pejo em mostrar a mais abjecta das violências, crua e despida (muitas vezes, literalmente) ou, ao mesmo tempo, a mais bela das poesias. Mostra também o quanto o jovem Herold, na altura com 21 anos, descobrirá de atraente no poder e no fingimento. Aquela que começa por ser uma pequena mentira transformar-se-á na grande actuação – repare-se que não se trata de uma biografia de Willi Herold, fala-se aqui de uma figura que parece única, isolada, como se não existissem outros capitães, Herold é “O” capitão, talvez para mostrar a intensidade do sentimento de superioridade tanto almejado.
O filme propõe uma visão deste período da guerra quase encenada, irreal, picaresca, o capitão encena a primeira e derradeira peça em que é protagonista, coadjuvado por outros actores que sabem perfeitamente o que se passa mas escolhem não saber, voltando o olhar até mesmo à morte de homens seus semelhantes nos crimes cometidos. Os banquetes e as festas grotescas apenas reforçam esse lado de constante buffonerie – tão grotescos quanto líricos e até mesmo ingénuos, infantis, reflexo da imaturidade do jovem. Os planos reflectidos em espelhos são, aliás, frequentes, como que remetendo para o necessário exame de consciência no que toca à amoralidade dos crimes retratados. Willi, o homem comum, soldado raso que se transforma em SS ao envergar a farda, é apenas aquilo que os que o rodeiam permitem, acreditando piamente nas suas mentiras ou acreditando puramente por amor à arte da mentira – quantos homens não querem escapar à inevitabilidade da morte nem que para isso tenham de embarcar na grande farsa e ignorar, por exemplo, os discursos às tropas sem calças vestidas ou a virilidade das ordens com as bainhas desalinhadas e demasiado longas, como muitas vezes as crianças envergam quando ainda não se sabem vestir convenientemente.
“O Capitão” mostra-nos um outro lado da guerra, aquele de que muitos não querem ainda hoje falar e que trouxe até ao seu realizador dificuldade em conseguir financiadores, precisamente por não mostrar a visão branqueada instituída no imaginário colectivo. A captação de som e a banda-sonora tornam o tema ainda mais crítico, sobretudo nas sequências mais brutais, mais violentas, normalmente inesperadas e sem filtros (sendo as mais relevantes as que se passam no campo de prisioneiros), relembrando que na guerra se trata de matar ou ser morto.
O mote é dado logo nos primeiros momentos do filme, quando Willi Herold veste a farda e encena o seu espectáculo para uma plateia inexistente, o vazio apenas retribuindo o eco. Esse aspecto irrealista percorrerá toda a longa-metragem, a dada altura sendo legítimo perguntar se este ou aquele elemento é ficção – a maioria não é e faz parte do arquivo dos julgamentos de Oldemburgo, onde Herold, entre outros, foi condenado pelos seus crimes. Herold limpa a lama da face para a performance que se seguirá, um magnífico e desconcertante espectáculo de crueldade humana, de alemães contra alemães, perpretando toda a espécie de crimes em nome do orgulho e da vaidade.
Magnífica fotografia a preto e branco, exímia banda-sonora, tensa e muito interventiva, excelentes actores, “O Capitão” é daqueles filmes que faz com que seja pecado não ir ao cinema, tal o deslumbre e pese embora tema.
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