“O Deslumbre de Cecília Fluss” de João Tordo
Amar é perder
Depois de O Luto de Elias Gro e O Paraíso Segundo Lars D., João Tordo fecha um ciclo de três livros, aos quais apelidou de «trilogia dos lugares sem nome», com O Deslumbre de Cecilia Fluss (Companhia das Letras, 2017), um livro arrebatador, à imagem daquilo que foram os seus antecessores.
Com uma exploração narrativa assumidamente diferente dos seus anteriores trabalhos, João Tordo prometeu e cumpriu a tal viragem de escrita edificada sobre um ambiente mais intimista e atmosférico que cauteriza a alma humana, – que nestes livros assume-se como uma dialética entre a luz e a escuridão, o passado e o presente, sem qualquer vislumbre de futuro, a vida e a morte, – e marca uma importante página na literatura nacional com um conjunto de obras absolutamente soberbas e carregadas de um inebriante nostalgia, não só dos seres, humanos ou “inanimados”, como também dos lugares, sentimentos e perdas.
E antes de cair o pano, Tordo, serve-nos numa especial bandeja, os desvarios existenciais de Matias Fluss, um adolescente perdido entre a descoberta do sexo, a loucura e demência de um tio e o universo budista. No seio de um ambiente familiar partilhado com a mãe e Cecilia, sua irmão mais velha, Matias luta contra as dúvidas de uma primeira paixão, os porquês da vida e a sacrossanta competitiva convivência entre pares, fantasmas que geram conflitos e (in)consequentes tentativas de afirmação.
Para se libertar destas amarras que tendem a sufocar a sua masturbatória existência, Matias foge, objetivamente, do seu quotidiano para a cabana isolada do tio Elias, uma pessoa que luta contra a demência mas cujo amor dedicado ao sobrinho quebra qualquer barreira provocada pela doença.
E é entre várias sequência de fuga que Matias vive um acontecimento que vai roubar e definitivamente abalar a sua inocência para a eternidade: o estranho desaparecimento da sua apaixonada irmã Cecilia, vista pela derradeira vez a saltar de uma ponte. Destroçado, Matias segue a via sacra que se tornou a sua vida fora da sua terra de sempre, valendo-se de uma vida de professor universitário que é abalada por uma carta que desenterra o tortuoso passado continuamente dilacerado pelo desaparecimento de Cecilia e que pode revelar o mistério do (o)caso da sua irmã.
Entre metáforas, filosofias, descobertas e dores várias, João Tordo (des)constrói Matias, mostrando que o sofrimento é «a costura da existência» e para isso serve-se de uma escrita em forma de dinâmica dialética onde a ausência de espaços gráficos aproxima o autor do leitor e a narativa da (pseudo)realidade.
Como que em busca de uma redenção perdida, O Deslumbre de Cecilia Fluss é um extraordinário, e poético, exercício de reflexões, seja através de uma demência em forma de língua inventada, por via de uma cabana isolada no coração da floresta ou pela revelação de que o amor, o “ter” alguém, é um refúgio da perda que é a vida em formato espiral, mesmo que a epifania surja numa forçada estada num buraco armadilhado na floresta.
João Tordo consegue ainda que olhemos e amparemos a loucura, que abracemos a sua finitude, especialmente através de monólogos como o é a presença do tio de Matias no hospital psiquiátrico, entendido como um olhar para si mesmo e um empreendimento exorcista de uma alma atormentada que procura tudo menos a rendição.
Desde a capa cativante até a um “recheio” apaixonante, O Deslumbre de Cecilia Fluss tem o mérito de fechar esta trilogia de forma sublime e sublinha a capacidade do seu autor ter conseguido uma coleção de três livros autónomos, com personagens comuns, transversais e outras que os completam de forma independente e que reforçam talvez a maior e mais dolorosa das certezas que transforma o amor numa sequência de perdas.
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