Michael Marshall Smith

“O Diabo, O Relojoeiro e a Máquina dos Sacrifícios” de Michael Marshall Smith

A existência comum (ou talvez não tanto) de Hannah Green

Imagine, se não se importa, a oficina de um relojoeiro. (…) (…) É que se não estiver preparado para ouvir o que eu tenho para dizer, nada disso resultará.

Este novo livro do escritor britânico, autor bestseller de thrillers, literatura fantástica e guionista, Michael Marshall Smith, cuja acção é sublinhada pelo destino, auto-descoberta e o desafiar do que acreditamos ser certo na vida, O Diabo, o Relojeiro e a Máquina dos Sacrifícios (Topseller, 2017), é um excelente exemplo de união entre o fantástico aliado a humor, que vai prender o leitor desde a primeira página.

A vida não é como um relógio de pulso ou um relógio de parede. Não a podemos construir e depois dar-lhe corda, pela primeira vez, para a pôr em marcha.

Não há início. Estamos sempre a meio.

Michael Marshall, apresenta uma elaborada história, de contornos surpreendentes com personagens interessantes, cada uma com relevância para a evolução das descobertas e dismistificações de mitos, página a página.

Como em qualquer história deste autor, o único aspecto negativo, destas 381 páginas, é o de terminar muito cedo, deixando o leitor ansioso por mais.

Com uma capa, que convida até os mais novos a pegar no livro, capítulos curtos e concisos, um discurso directo e apelativo, que deleita e instiga o leitor não só a ler mas, também, a imaginar e ser parte da história, recheado de descrições pormenorizadas aliadas a algum humor, como se estivesse a oferecer um doce, lentamente, a quem se aventura a entrar por esses caminhos, o autor confere a cada interveniente nesta narrativa, momentos-chave para deslindar o mau funcionamento da máquina, criar alianças, onde de outro modo, não seriam possíveis, e conferir um pouco de harmonia e resolução à vida de Hannah Green.

Mas todas as histórias, precisam de nós para sobreviver.(…) Os seres humanos e as histórias complementam-se. Nós narramo-las, mas elas também nos narram, alcançam-nos com as suas mãos suaves, e acolhem-nos de braços abertos, envolvendo-nos no seu enleio. (…) Foi isso que aconteceu a Hannah Green. Foi apanhada numa história.

Num mundo onde nada é o que parece, tudo parece indicar que a vida não é nada mais que um jogo de ilusões, onde o Diabo fez uma pausa forçada, a Máquina dos Sacrifícios deixou de funcionar como devia, o Engenheiro tem de revelar uma verdade há muitos anos escondida e a pequena Hannah Green vê a sua vida virada do avesso.

Hannah era uma alegre menina de 11 anos que, após a separação dos pais, começa a considerar que forças malignas influiram na sua vida e que esta é, sumamente, demasiado comum e desprovida de emoção.

Presa à realidade de viver com um pai, sempre triste, e uma mãe ausente, Hannah crê que já nada no mundo é igual ao de antes e tem toda a razão. Só desconhece até que ponto.

É aqui, que o Diabo vai fazer das suas e envolver a jovem Hannah nos seus esquemas.

Entretanto, no Palace Hotel, em South Beach, Miami, um velho dormitava na esplanada. (…)

Naquele dia, o velho acordaria de um sono bem mais profundo.

O Diabo, senhor do Inferno, acorda do que, aparentemente, foram umas férias forçadas, esgotado e ciente de que algo está mal.

Em busca do Engenheiro para arranjar a máquina, depara-se com vários obstáculos pelo caminho, e certos adversários, os chamados Vigilantes, que vão tentar de tudo, além dos limites, para impedir que ele recupere a máquina.

No meio de todo esse rebuliço, procura o auxílio de um demónio de acidentes, um ser, já de si, puramente desastrado, de nome Vaneclaw.

Este demónio, de aspecto semelhante a um enorme cogumelo exótico, repleto de bolor, é sem dúvida, uma das personagens mais simpáticas e engraçadas, que ilumina cada momento em que está presente, literalmente.

O Diabo deu uma grande palmada na cabeça de Vaneclaw e o demónio ficou ligeiramente luminoso, como uma enorme luz de presença, espalhando luz suficiente para que vissem onde estavam. No fundo de uma perigosa e gigantesca fenda, gelada e húmida, no meio de nenhures.

Mas não será apenas Vaneclaw que irá acompanhá-lo nessa louca e empolgante montanha-russa, de encontros e desencontros.

Hannah e o avô Erik, são os primeiros a entrar nesse comboio alucinante, seguidos da Tia Zo, do pai Steve, e até a mãe Kristen se vê em apuros.

Capa-O-Diabo,-o-Relojoeiro

Os momentos mais envolventes deste livro, são aqueles onde se mostra e se desenvolve o relacionamento cândido entre Hannah e o avô, a quem a mãe considera esquisito e que constrói sempre esculturas pavorosas.

Mas este avô não é um homem normal, nem pode ser, afinal ele é o Engenheiro, o homem responsável pela construção da Máquina dos Sacrifícios e quem o Diabo procura, tão intensamente.

Um homem dócil e hábil que, após a morte da sua mulher, deixou tudo o que tinha de material e o mantinha enraizado, e se transformou num ser livre de correntes, excepto aquelas que, metaforicamente, o mantinham unido ao Diabo.

O Engenheiro levantou-se, aproximou-se, abriu calmamente as portas de correr e olhou o velho de fato, de cima a baixo.

  • Por onde diabos tens andado?

Era uma velha piada entre eles.

Sim, o Engenheiro é o famoso relojoeiro, tem mais de 300 anos e é o guardião da máquina.

Mas a sua família não sabe deste segredo, isto é, até o Diabo o encontrar na cabana, onde está com Hannah e os levar em aventuras desde a Sibéria ao Além, uma versão do Inferno onde os vivos vão parar.

Passo a passo, a escuridão aumenta e respira nos seus pescoços, o tempo corre contra eles, e as hipóteses de encontrar a máquina, que no, entretanto, se extravia, diminuem vertiginosamente.

Em simultâneo a esta viagem, Hannah começa, finalmente, a entender, pouco a pouco, e nos limites do que a sua idade lhe permite compreender, o porquê dos pais não estarem juntos, ao passo que aprende a aceitar o que tem na sua vida simples e comum, sob o olhar atento do velho de fato.

É brilhante, a forma maravilhosa e real, como o autor aborda os sentimentos desencontrados e a confusão nos pensamentos da jovem Hannah, ao mesmo tempo que a lança num mundo surreal, por vezes assustador, que desafio a desafio, a impulsiona a enfrentar os seus próprios medos e a lutar pelo que quer, no meio do caos.

É uma história que envolve, palavra a palavra, momento a momento, e em que o leitor, dificilmente, consegue parar de ler sem ter terminado, por completo, o livro.



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