O grão e o pixel
Conversa com a fotografa e realizadora Mariana Castro. Conheçam o seu percurso, os seus cúmplices e como encara o estado da arte em Portugal.
Mariana Castro, 24 anos, Lisboa. Inicia-se na fotografia enquanto auto-didacta, onde desde logo se distingue numa permanente reinvenção da própria imagem. A pulsão narrativa traz-lhe, por acréscimo, a realização cinematográfica, descoberta habitualmente acompanhada pela cumplicidade de Sílvio Santana, co-realizador e argumentista.
A ocasião levou-nos à conversa acerca das técnicas que, no seu trabalho, distinguem suportes digitais e analógicos, das aproximações entre a fotografia e o filme e de uma reflexão geral acerca dos sintomas que abalam o panorama recente do cinema em Portugal, onde as estratégias de fuga da perseverança artística se revelam na produção de valor fora das luzes do hábito.
Como surgiu o teu contacto com a fotografia?
Antes de vir estudar Cinema para Lisboa, trabalhei em fotografia de forma auto-didacta. Estava na área das Ciências, percebia que não era a minha área, e estava a lutar com Química, que não era propriamente fácil para mim.
Houve, por exemplo, influências de artistas que descobriste na altura?
Não, na verdade só descobri artistas com que que me identificava depois de ter produzido coisas que me identificavam. Comecei a dizer para mim própria que estava a fotografar deste 2003, mas só por 2006 é que percebi, por exemplo, que gostava muito de Francesca Woodman, o que não quer dizer que não houvesse outras influências em mim persistentes de outra forma. O meu pai tinha uma câmara, eu apropriei-me dela e até hoje é minha.
Começaste em analógico ou em digital?
Tinha a analógica do meu pai, fazia algumas brincadeiras muito miúdas e tinha ainda uma máquina mini-dv ligada ao computador. Comecei a fabricar fotograficamente qualquer coisa menos casual, não tanto devido ao suporte em si, mas porque tinha ao lado do computador um candeeiro que emitia uma luz muito similar a um foco, com que brincava. Era auto-centrado, uma auto-exploração. A descoberta daquela fase, em todas as dúvidas que lhe são inerentes é como essa luz sobre nós, a fazer-nos desenvolver uma visão sobre nós próprios. Aí joguei com a luz, com o eu, com a forma como me via.
Usavas programas de manipulação de imagem, nessa altura?
Sim, porque as fotos eram stills digitais, do mais rudimentar que podiam ser, e usava para pôr preto-e-branco, escurecer, etc. Comecei a apreciar o preto-e-branco, a perceber o que é que era a luz, as texturas, e a gostar outra vez do analógico, explorando isso. E foi aí que me dirigi para a matéria, para a película, para o ruído, para toda a textura que a luz podia acrescentar.
Acabaste por nunca ter uma formação em fotografia.
Não, nem pretendi. Durante esses dois anos, não tinha qualquer tipo de orientação extra. Era algo auto-explorativo, exaustivo sobre mim, o que se torna cansativo. De vez em quando, apareciam cúmplices, que me davam largas para explorar outros “eus”, outra textura, outra pele. A minha fotografia foi sendo mais explorada devido a essa possibilidade.
Entretanto, a fotografia tornou-se algo que precisava de mais conteúdo. Não era somente o retrato, o símbolo ou o significado pertencentes a cada uma dessas personagens. Começaram-se a criar algumas linhas narrativas nas séries, fotografias que lidavam bem umas com as outras se estivessem intercaladas entre si, ou seja, uma primeira pulsão narrativa para contar uma história, de fazer um filme através de fotografias.
Depois, a necessidade não se ficou só pela fotografia: descobri que não queria somente a fixidez de algo que se fechava em si próprio, e dirigi-me também para o cinema.
Na tua fotografia, notei a explicitação dessa atenção sobre o corpo e sobre as suas movimentações e, com uma certa progressão cronológica, a aproximação das feições do teu rosto, sem a clareza identificativa do seu retrato mas, pelo menos, numa concessão fragmentada.
O auto-retrato tem de ser uma recorrência. Há fases passadas de auto-exploração que já não me interessam mas, em qualquer presente, senti sempre a necessidade da auto-exploração. Olhando para trás, consigo perceber que havia demasiada tensão para trabalhar com o rosto, fosse o meu ou outro. Uma tensão que se gera entre a pessoa que fotografa, a máquina e o que está diante dela. Quando há um cúmplice e se proporciona a possibilidade de trabalhar um novo corpo, é aliciante pensar que podemos fotografar o rosto de outra pessoa. Quando isso acontecia, corria mal, porque o outro não estava nesse rosto fotografado. Era outra pessoa, era consequência da tensão humana. Assim, sem identificação explícita, o rosto passa a ser um fragmento, a ser também corpo. Confesso que não sei, linearmente, se já cheguei ao rosto ou se isso ainda é um percurso que está a acontecer.
Há uma perspectiva muito encenada nas fotografias, que as distingue: a eminência estática da pose, onde é só a técnica que lhes concede o movimento. Deste ponto de preparação tão trabalhado, é no mínimo curioso que te aproximes do cinema documental, e chegues tão próximo de uma procura por um “indício de realidade”, como no teu filme “Imemória”.
O indício de realidade é quando identificamos tal sujeito como sendo o outro, definido enquanto ele próprio, e ele é verosímil, ele existe. A fuga que eu lhe faço, por qualquer método, é a da memória, mesmo no documentário. Por um lado, quero fazer um filme em que identifique o sujeito, porque o filme é sobre ele e, nesse caso, se calhar o rosto é a única forma de o fazer. Por outro lado, tenho de fragmentar o sujeito entre o que ele é e a sua memória, para falar sobre isso. Não posso fazê-lo na tensão presente do seu rosto, já que isso está em relação a mim, não está em relação a ele próprio. Neste caso, a protagonista de “Imemória” tinha de se distanciar da câmara para conseguir falar do seu eu, da sua memória e, se aí o som é um método, também o é toda a construção que se faz na montagem, para aceder a algo que não é um presente, é uma linha ficcional que estou a criar com essa pessoa.
A minha perspectiva em relação a isso é que aquele momento é um eterno presente daquela pessoa, seja mais ficcionado ou mais documental, seja mais narrativo ou menos, e essa condição vai persistir para sempre na ocasião pessoal de cada visionamento.
Sim, mas porque é um presente que será para sempre presente porque temos sempre uma relação com o passado. Só do passado é que conseguimos falar.
Que materiais costumas utilizar, nos vários níveis do teu trabalho?
Em fotografia, é filme. Digital, aí, ainda não consigo. Digo ainda, porque assumo que é uma obrigação que devo ter. O facto de ter partido de um digital muito fraco, permitiu-me ver noutros digitais a possibilidade de os manipular, de os tornar mais matéria. Com isto digo, criar com eles uma textura, quase palpável.
Estás a pensar nas altas definições?
Não, na verdade, estou a pensar exactamente no oposto. Os digitais que aproveitei, dissimulados, e expostos em série, são tão fracos que têm um grão que eu posso manipular e estragar mais, e aí construir uma textura, sem necessariamente procurar a definição. Mas falo em matéria porque não consigo lidar ainda com aquilo que se pode apagar. Não consigo ficar satisfeita com o formato pixel, apesar de lidar com ele.
No nível de outras preocupações, contextualizadas em época, país, crise, fraquezas na distribuição dos recursos no sector, etc, tendo tu tirado a licenciatura em realização de cinema, não achas que aí o digital pode e deve ser uma via possível?
Pois, é aí que a minha opinião se divide. Na fotografia não consigo ainda mudar para o digital, talvez porque, para mim, a fotografia se defina ainda naquelas linhas onde é preciso que habite uma narrativa própria. E se eu não sentir que há uma matéria lá dentro, se não sentir que há algo humano lá dentro, alguma coisa de palpável – a película, eu posso agarrá-la, ela existe… O quadro digital, por outro lado, desfaz-se, parece-me não existir, a menos que eu o transponha para físico, para concreto. Como não tenho muito o hábito da transposição para o papel, acabo por preferir ter a película.
Confessas a tua libertação perante a fraca qualidade digital que, em fotografia, pudeste trabalhar. Quando tens no teu computador uma foto ou um vídeo que podes articular em disposições variadas, testar numa gama de cores, ensaiar uma multiplicidade de cópias diferentes, e variar entre escolhas estilísticas, sem gastares mais dinheiro por isso, não há daí vantagens, em termos de aprendizagem?
À excepção da preocupação ecológica (os evitáveis químicos envolvidos no processo de revelação), o argumento “não custa dinheiro”, não se insere na minha prioridade. Tenho o hábito de trabalhar com o rolo, um acto que não me é assim tão dispendioso, já que não gasto assim tantos rolos para produzir o que produzo.
Em vídeo, não tenho nenhuma resistência ao digital a não ser por uma questão de espera. Não vou resistir quando, com poucos meios, ele me satisfizer ao ponto de chegar a uma profundidade de campo quase fotográfica, de criar uma textura que permita ser muito palpável, segundo a forma humana de percepção óptica de conseguir focar-te a ti e não focar tudo. É apenas uma espera que faço, porque sei que actualmente a técnica se aproxima rapidamente desse ponto. Nessa relação, sinto-me um bocado dividida, porque uma coisa é a fotografia, outra coisa é a realização.
Pensando acerca da discussão actual acerca do estado da arte em Portugal e, em particular, da arte cinematográfica, a jeito de oráculo para teu futuro, prevês-te a ter possibilidades para fazeres o que queres?
A arte, não só em Portugal, está a vários níveis muito capitalizada, o que significa que está inserida num sistema económico. Há muitas questões do presente em relação à arte que não são muito fiéis à arte.
Em relação ao meu futuro, não sei se vai depender dessa capitalização ou da arte, o que são duas coisas completamente diferentes. Quero acreditar que o meu futuro, para o bem ou para o mal, depende da arte, ou seja, que seja um percurso onde eu mantenha uma posição que seja crítica e construtiva em relação à arte, e os meios das artes em relação ao que eu possa produzir. Há pessoas em Portugal que estão nessa vertente, há outras que já estão a ficar “comidas” dentro do sistema económico.
A arte tem várias vertentes. Há a arte expositiva, galerias, e há a exposição da arte cinematográfica, que é um bocadinho diferente. Porque há um estado que tem um sistema que apoia certos realizadores, e um sistema que pode apoiar jovens talentos, ou não. Aposta-se muito no não, em apoiar nomes já conhecidos. Não tenho nada contra isso, talvez haja é falta de sistemas que apoiem jovens talentos. Não falo só por mim, falo por outras pessoas que estão no meio, a tentar fazer valer o seu produto artístico – não produto capitalista – e não o conseguem fazer porque as vagas estão preenchidas pelos nomes recorrentes. Porque não me encontro ainda nesse meio, já que tenho feito um percurso sem meios, acho que se pode fazer Cinema assim. No entanto, há filmes que se querem fazer que só são possíveis quando financiados, porque exigem-no. Há temáticas e matérias que exigem isso. Mas acho que quem quer fazer cinema, pode fazê-lo. E quando se quer muito fazer uma coisa, faz-se, não se está à espera de um subsídio. Que os projectos passem da boca e do papel, para serem filmes, para serem arte. Nisso, não sou muito pessimista. Que se façam as coisas com gosto, com fundamentação e não se façam as coisas só por fazer.
No âmbito do que anteriormente disseste sobre “os sem meios”, e da consciência óbvia de que estes não se podem aventurar em certos tipos de dispositivos artísticos que outros autores têm à disposição, já sentiste, em algum ponto no teu percurso, necessidade de entrar por um certo caminho artístico a ser constrangida por essa falta de meios?
Há caminhos a que sei que só consigo chegar com apoios. Há coisas que se querem fazer que não se podem fazer sem meios, sozinho, aliás, até porque o cinema é um trabalho de equipa. É praticamente impossível fazer Cinema sozinho. A minha equipa, até aqui, tem sido composta de amigos, porque os amigos conseguem pôr em prática coisas que só em equipa são passíveis de serem postas em prática. Doam parte de si ao trabalho. E há a parceria na realização, de longa duração, entre mim e o Sílvio. A passagem da fotografia ao Cinema foi um caminho acompanhado. Uma das minhas necessidades sempre foi a narrativa e, ressalvando as suas qualidades na realização, ele tem uma linha narrativa muito forte. Nestes pequenos filmes realizados em conjunto, ele ocupa-se quase em exclusivo do argumento, o que estabeleceu, a meu ver, uma boa conjugação que tem produzido obras unificadas.
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