“Já não dá”
O hip hop tuga contra a crise
Primeiro foi «Já não dá», de Chullage, depois foi «Sexta-feira (emprego bom já)», de Boss AC e, depois ainda, «Heróis», de Capicua. O hip hop assume, em 2012, um carácter político, o rótulo que lhe tentaram colar há tempos, sem sucesso. Um ano difícil, atiram uns. Um ano em que até os feriados nos tiram, dizem outros. E tudo isto numa altura em que o número de edições de hip hop nacional é assinalável. Está dado o mote para o regresso do hip hop tuga em força? Boss AC, Capicua, Chullage e Rui Miguel Abreu respondem.
Um pouco de contexto: No já longínquo ano de 1994 sai para as ruas “Rapública”, a primeira colectânea de hip hop português de sempre comercializada. Perdão, o primeiro objecto físico de hip hop português comercializado. “Okay, roll the drums”, ouvimos nos primeiros dois segundos da rodela que, hoje sabemos, é essencial – está dado o mote para o que se seguiria, a ascensão do hip hop português (vulgo hip hop tuga) a fenómeno de massas. Começa com «Nadar», dos Black Company, o primeiro grande sucesso do género, e continua agora, num ano em que estão programadas várias edições, tanto de nomes fundamentais (Chullage, Kacetado, Valete), como precursores (Boss AC), como ainda novas promessas (Capicua). Em 1994, no tal “Rapública”, ouvimos «Putos de Rua», dos Zona Dread de D-Mars e Tony MC Dread.
É um tema que aborda o racismo e a primeira punhalada política: “Cada dia a situação está pior, cada dia se sente um pouco mais o odor, o odor da miséria, seja na cidade, seja na periferia e nos bairros de lata, a voz cada vez mais mata. Alguns ainda não acreditam nisto tudo, mas nós estamos fartos de espalhados por todo o lado, na urbanização e, não, o governo não quer dar a sua mão. Porquê? Sabes muito bem porquê… porque tem muito mais valor a CEE. Seus danados corruptos, não sentem nada quando vêem putos….” Também por lá, pelo alinhamento, está «Minha Banda», de Funky D, crítica corrosiva aos males de África no geral e à guerra civil angolana no particular. Anos depois, Bob da Rage Sense em, 2004, em «A Carta», e, um ano depois, Crewcial, em «Num Segundo», fariam o mesmo.
Há também em “Rapública” um tema chamado «A verdade», canção de influências jazzisticas, canção de Boss AC, em que também cabe a denúncia do racismo. AC que agora regressa com novo disco, “AC para os Amigos”, e que no primeiro e omnipresente single, «Sexta-feira (emprego bom já)» lança farpas ao governo que agora é de direita: “Eles enterram o país, o povo aguenta, mas qualquer dia a bolha rebenta. De boca em boca, nas redes sociais, ouvem-se verdades que não vêm nos jornais”.
Em 1994, ainda no mesmo “Rapública”, atirava ao governo da altura, também de direita, mas liderado por Cavaco Silva, o actual Presidente da (note-se!) República: “Cavacos que só querem no bolso pôr mais uns cobres, gastam dinheiro à toa sem se lembrarem dos pobres”. Confrontámos Boss AC com a possibilidade deste cenário actual de crise criar condições para o regresso do hip hop tuga em força, aos tops, às rádios, à televisão, às massas. A resposta é despachada numa frase: “Como digo no «Levanta-te» do álbum passado, “Preto no Branco”: …não estou de volta porque nem cheguei a bazar». Este é o (curto) depoimento de Boss AC, mas falámos também com Capicua, Chullage e Rui Miguel Abreu. Tentámos falar com Valete, mas não obtemos resposta – soubemos depois que tinha sido obrigado adiar o concerto no Campo Pequeno devido a uma lesão no ouvido. Valete que em 2006, em «Serviço Público», a canção, atira: “Do cavaquismo ao Guterrismo, até ao Socratismo, mudam o ismo, mas a gente continua no mesmo. Vocês ultrajam gays, é de serem machos que se gabam, mas, de quatro em quatro anos votam naqueles que vos enrabam. Legitimam um sistema vilão que nos consome. Quem é o Sócrates? Que vá amassar o pão que a gente come.” Também em 2006, os Mundo Sonoro (trio composto por Mundo, dos Dealema, Berna e Né, dos Barrako 27), em «Imagina», atiram, revoltados: “Agarro no papel, voltas interiores, dissabores, coisas básicas que vês a qualquer lado que fores. Uma pedinte a usar o filho para ter que comer.” Ainda nesse mesmo ano, Sam the Kid tem na extraordinária «Negociantes» – com participação do falecido MC Snake – uma premonição: “É isto que me anseia quando veio a moeda europeia, só sei que à boleia vem aí uma recessão. Vamos para a Assembleia fazer a recepção, dizer que a coisa está feia, que isto é uma decepção. Eu só quero atenção e a compreensão, quero a vossa redenção e tirem-me esta retenção na fonte. E qual é esta fonte? É a fonte do vosso banco para gastarem numa imigrante no elefante branco.”
Voltemos atrás – em 1995, Da Weasel e Black Company aproveitam o embalo dado por «Nadar», o já mencionado grande êxito dos segundos, e lançam os primeiros longa duração, “Dou-lhe com a Alma” dizem os Da Weasel, “Geração Rasca” reclamam os Black Company. Quase 20 anos depois, os dois projectos estão extintos e a “geração rasca” transformou-se na “geração à rasca”, a “casinha dos pais” ou “dos 500 euros”. 20 anos depois, o hip hop volta a colocar o dedo na ferida, volta a meter política, volta a cantar o protesto. Boss AC nessa «É sexta-feira (emprego bom já!)», Chullage em «Já não dá», Capicua em «Heróis» e Valete que tem edição marcada para este 2012 e, sabemos, deverá ter algo a dizer sobre a situação actual do país. Como já referimos, o hip hop tuga quase desapareceu dos tops, das rádios e das televisões. Agora, com o cenário de crise nacional e internacional, parece estar dado o mote para um regresso em força. Chullage: “O facto do hip hop ter perdido essa visibilidade no mainstream não fez dele ausente. Aliás o hip hop, ou melhor, alguns «hip hoppers», têm estado activos em várias frentes da contestação. No entanto, é certo que, com o agravamento das condições sociais, as pessoas estão mais permeáveis ao discurso de descontentamento que os vários rappers têm sistematizado regularmente e que tem sido apenas pontual em outras expressões musicais.” Esta afirmação de Chullage é tão mais interessante quanto menos a generalizarmos. Atentemos, por exemplo, na pop – B Fachada editou, há menos de um ano, o EP de uma só faixa, essa ode ao Portugal em constante crise de tudo, essa “Deus, Pátria e Família”.
Nos últimos meses, o volume de edições de hip hop nacional foi invulgarmente alto. Dealema, Halloween, Boss AC, Kacetado, Capicua, Deau, Chullage e Orelha Negra ou regressaram ou estrearam-se com discos. Alguns, como já afirmámos, põem o dedo na ferida, criando menções considerações políticas: Capicua, Chullage e Boss AC. Rui Miguel Abreu (RMA), colaborador da revista Blitz e especialista nisto do hip hop, refere que “não é por haver corrupção ou crise que os rappers, produtores e djs vão querer fazer mais e melhores discos. A música é produzida porque sim, porque os artistas têm necessidade de expressar qualquer coisa e essa necessidade é independente do estado da nação, das crises ou do que quer que seja.” Capicua concorda e refere a evolução do hip hop nacional na última década não foi linear “e a prova disso é o facto de o ano de 2006 ter sido um dos mais produtivos de sempre – saíram álbuns de Valete, Sam the Kid, Nigga Poison, Mundo, Expião, Mind da Gap, Boss AC…” RMA: “Não é o hip hop tuga que desaparece e regressa em força, mas a atenção das pessoas. O hip hop em Portugal, desde o marco “Rapública”, que data já de há quase duas décadas, não tem parado de crescer: em talento, em criatividade, em diversidade de propostas.” Já Chullage concorda que “de facto assiste-se a um ressurgimento do rap como porta estandarte, aliás, porta bandeira preta, faixa, megafone, cocktail de uma geração que está a olhar para a frente e só vê pontos de interrogação. Essa forma, mais ou menos consciente, mas sempre irreverente e instantânea, faz do rap uma arma, uma voz e um espaço que o media não nos dão – monopolizando o debate nos tradicionais “opinion markers” (Marcelos [Rebelo de Sousa], Pachecos [Pereira], etc).”
Chullage continua, acrescentando à equação um ponto importante: “O hip hop [é] uma música de jovens para jovens e este descontentamento ganha espaço nas letras da juventude que faz rap e encontra eco nos milhares de headphones, share, comments e likes”, esses mesmos, os do Facebook, o mesmo que tornou um manifesto de um pequeno grupo de jovens numa grande manifestação da cultura do à rasca. “De qualquer das formas este será um momento em que o hip hop tem, pela sua história, a responsabilidade de deixar a sua marca ou de assumir mesmo a frente deste protesto nas palavras e nas acções – como nos E.U.A., Brasil e França. Quando oiço música dos José Mário Branco, daqui [de Portugal], ou do Renato Cardoso, de Cabo Verde, posiciono a nossa música na continuidade dessa linha, pois as coisas que eles escreveram estão aí todas em força.” Voltamos a inserir Capicua no debate, ela que está em força com o seu disco de estreia homónimo, ela que encheu a Galeria Zé dos Bois para apresentar esse mesmo álbum, ela que refere logo na primeira canção de Capicua, «Primeiro Dia», que está quase nos 30 e “que para gastar tinta é bom que se justifique”. Ela que nos diz que “se encararmos o rap como uma música de intervenção, como veículo de denúncia e crítica social, acho que estão criadas as condições para que os próximos anos sejam anos de muito produtividade lírica.” Mas – e aqui vem o o mas – “considerando que o rap é muito diverso, plural e polivalente, podendo servir infinitas abordagens, temáticas, intenções, realidades sociais e geográficas, grupos e estilos, não podemos afirmar de forma maniqueísta, quase como quem faz um exercício de matemática, que quanto maior a turbulência social, maior é a produtividade do hip hop.” RMA sentencia: “O hip hop tuga não está a regressar em força. Não está para regressar, ponto. Porque simplesmente nunca se foi embora.”
A banda sonora da crise
Chullage – «Já não dá»
Já tínhamos saudades de Chullage. O rapper já não dava notícias desde “Rapensar”. O disco chama-se “Rapressão”, seguindo a linha de todos os outros, um trocadilho com o termo “rap”. E o título diz muito sobre aquele que é o primeiro tema deste álbum editado pela Optimus Discos, «Já não dá». O maravilhoso sample é de «Assim como quem nasce», escrito por Paulo de Carvalho e interpretado por Luísa Basto. Ouvimos as palavras de Ary dos Santos ecoar ao longo de todo o tema: “E se Abril ficar distante / Desta terra e deste povo”. O resto do poema, Chullage deixa em aberto, como se de uma mensagem subliminar se tratasse. A letra é incisiva, é o retrato de um país à beira da bancarrota. “Já não dá para acreditar”, diz-nos o rapper da Margem Sul. E quem acredita (nas suas palavras) somos nós.
Boss AC – «Sexta-feira (Emprego bom já)»
Ouvimos «Sexta-feira» em todo o lado. No café, no elevador, na loja de conveniência, na bomba de gasolina, no duche do vizinho que tem a mania que é cantor. Depois de “Hip hop (sou eu e és tu)”, Boss AC volta a escalar tops e a bater records – à altura em que este artigo foi fechado, o vídeo de «Sexta-feira» já levava mais de 3 milhões e meio de visualizações no Youtube, ou seja, é o vídeo de música português mais visto de sempre. A mensagem está mais próxima da de «Parva que sou», dos Deolinda, a canção que muitos consideraram ser o hino da geração à rasca. «Sexta-feira» vai mais longe, Boss AC foi inteligente o suficiente para perceber que o povo odeia crises, mas adora as sextas. Este sim, é um hino.
Capicua – «Heróis»
Capicua diz que se estreia tarde, mas acreditamos que esta é a altura certa para «Heróis». Para a obra de estreia, o excelente registo homónimo, Capicua contou com a “mãozinha” de vários nomes fundamentais do hip hop cá do burgo, Sam the Kid, Ruas, XEG, Nelassassin. Lá para o meio está esta «Heróis», canção que também se aproxima da geração que não sai da casa dos pais, da geração que acha que não “vale a pena decorar a tabuada”, porque o resultado é só um: “Emprego zero”.
There are no comments
Add yoursTem de iniciar a sessão para publicar um comentário.
Artigos Relacionados