O Nosso Indie

A rua de baixo esteve presente na 2ª edição do festival de cinema independente de Lisboa. Leiam aquilo que vimos.

Foram precisos apenas 7 meses para o IndieLisboa regressar. Impossibilitados de utilizar o emblemático cinema S.Jorge, devido às obras de restauro que estão a ser efectuadas, o festival mudou-se para a Avenida de Roma e montou o seu quartel-general no Fórum Lisboa, sendo que a maioria das sessões decorreram nos cinemas King, a menos de 5 minutos (a pé) de distância.

Com um orçamento superior ao da primeira edição e uma maior quantidade de filmes e sessões, esta segunda edição do festival pretendia servir de consolidação da posição que adquiriu em 2004, repetindo o enorme sucesso de bilheteira e adesão de público que caracterizou o primeiro Indie.

A rua de baixo esteve presente em quase todos os dias do festival. Obviamente que não pudemos estar presentes em todas as sessões, nem esse era o nosso objectivo. Queremos apenas transmitir o ambiente geral de todo o festival, as diferentes áreas de programação e obviamente alguns dos filmes que vimos. Este é o retrato do “nosso” Indie.

A realidade em fotografia

O festival inaugurou como encerrou o ano passado: com um documentário. Se “Super size me” é um documentário light e engraçado, mas ao mesmo tempo preocupante, “Born into Brothels: Calcutta’s Red Light Kids“ é um filme bastante mais pesado e cru, cheio de contradições e injustiças, que relata uma triste realidade do nosso planeta.

Premiado com o Óscar de melhor documentário, “Born into Brothels” conta-nos a história de um grupo de crianças indianas, filhas de prostitutas, que lutam diariamente contra todas as contrariedades (até contra elas próprias), para terem um futuro diferente dos seus progenitores e uma oportunidade de vencerem na vida.

Essa oportunidade surge com a presença de Zana Briski, que durante alguns anos vive perto destas crianças e ensina-lhes fotografia. Com uma máquina na mão os resultados são surpreendentes. O empenho e dedicação das crianças é extraordinário e são criadas verdadeiras obras de arte.

O empenho de Zana não se fica pela fotografia. Com o decorrer do tempo, a ligação entre a fotógrafa e as crianças foi aumentando e surgiu a oportunidade de dar a estes miúdos uma perspectiva de futuro, uma educação e uma vida. Na Índia, um filho de uma prostituta dificilmente é aceite num colégio e a própria sociedade trata de marginalizar estas crianças. O filme retrata também essa luta de Zana, na tentativa de quebrar algumas das regras impostas pela tradição e pela sociedade.

Este é um dos exemplos de como a arte pode modificar o mundo. As fotografias destas crianças têm sido mostradas um pouco por todo o lado (estiveram também expostas no Fórum Lisboa durante os dez dias de festival) e o dinheiro amealhado tem sido investido directamente na vida destas crianças e na construção de uma escola que, segundo Kauffman (um dos realizadores presentes), estará concluída “a meio de 2007”.

Algumas destas crianças têm agora um motivo para sorrir, mas quantas estarão nestas condições ou em outras bem piores e não tiveram a oportunidade de ter sido ajudados pelo cinema?

Cinema Argentino

Um dos principais destaques desta 2ª edição do Indie é a retrospectiva (se assim podemos dizer) do novo cinema argentino, que surge neste festival como um case studie, para que o nosso cinema independente possa compreender como um país com poucos recursos financeiros conseguiu criar uma das mais interessantes cinematografias da actualidade.

Durante os dez dias de festival foram apresentados alguns dos filmes (10 longas e 10 curtas-metragens) que alteraram o estado do cinema argentino. Embora sendo películas que se encontram à “margem da lei”, pois não cumpriram os regulamentos necessários para receberem o aval do instituto de cinema argentino, todos estes filmes contribuíram para a génese de uma cultura independente do cinema argentino.

Um dos mais importantes filmes deste período é o “Mundo Grua” de Pablo Trapero, um dos muitos jovens realizadores a sair da escola de cinema de Buenos Aires.

A história desenrola-se numa Argentina em profunda crise económica, onde o desemprego é o factor dominante. Os actores são os próprios familiares e vizinhos de Trapero e a trama é uma mistura de realidade com ficção, bastante representativa deste novo cinema argentino. O filme surge quase como um documentário sobre a vida de um homem de meia-idade, Rolo, divorciado, com um filho e à procura de emprego.

Embora tenha pertencido, enquanto jovem, a uma banda rock bastante conhecida, Rolo praticamente renega esse seu passado de “estrela” e empenha-se a construir a sua vida e a trabalhar nas obras com uma grua. Esta sua procura de emprego leva-o para longe da capital, afastando-se assim da sua família e amigos.

O filme é um retrato de uma sociedade mergulhada numa crise económica profunda, em que as condições de emprego são precárias e quase desumanas.

Se o “Mundo Grua” foi o primeiro filme da carreira de Pablo Trapero, “Familia Rolante” é a película mais recente do realizador Argentino.

Este filme conta-nos a história de uma família de Buenos Aires, que viaja numa roulotte até ao interior da Argentina, para assistir a um casamento para o qual a avó e matriarca, foi convidada madrinha.

Obviamente que todo o percurso é bastante atribulado. Para além dos naturais problemas mecânicos da velha roulotte, são desenterrados antigos assuntos amorosos que nunca ficaram resolvidos no seio da família. Um road movie hilariante onde, para além das peripécias familiares, podemos também descobrir a Argentina rural.

A Guerra … Director’s Cut

Vinte e cinco anos depois da sua estreia, “The Big Red One” de Samuel Fuller surgiu neste festival completamente remodelado e com mais 40 minutos de filme, ficando assim próximo daquilo que Fuller idealizou em 1980.

Esta película fez parte (foi a única), de uma nova secção do Indie, que pretende, nos próximos anos, mostrar algumas das novas versões dos clássicos do cinema independente.

O filme retrata a(s) história(s) de um grupo de militares liderados pelo sargento Possum (interpretado por Lee Marvin) durante a 2ª guerra mundial. Os quatro soldados “intocáveis” percorreram alguns dos mais emblemáticos “cenários” de guerra da luta contra o nazismo.

A acção tem início no norte de África, na Argélia e percorre toda a Europa. Desde a Sicília e Itália, passando pelo desembarque na Normandia e invasão da Bélgica e Checoslováquia, este grupo de quatro soldados permaneceu intocável, como se estivessem abençoados por uma força “divina”.

Todo o filme é uma grande sátira do cenário de guerra que Fuller tão bem conheceu (esteve ao serviço da Força Especial Big Red One durante a 2ª grande guerra). Combinando o realismo com muito surrealismo, o filme retrata os episódios deste pelotão, sempre com um humor negro bastante requintado e fulgurante.

“4” de Ilya Khrzhanovsky

É apenas necessário utilizar um único adjectivo para caracterizar o primeiro filme em competição que tivemos oportunidade de assistir: estranho.

“4” é a obra de estreia do cineasta Ilya Khrzhanovsky, que nos mostra as duas faces da Rússia dos tempos modernos: a urbana e a rural. Pelo seu absurdo, os episódios destes dois mundos são tão realistas quanto inimagináveis. Este realismo é fruto da forma como o realizador capta as imagens, com uma câmara em punho, sempre atrás da acção.

Um dos pormenores mais caricatos deste filme é o seu som, que a pedido do realizador foi colocado uns decibéis acima do que é normal numa sala de cinema.

Infelizmente os pormenores são os principais motivos de interesse desta película, deixando a história num “charco” de caos, dificilmente compreendida. Uma sugestão para os curiosos, nada mais.

Playground FNAC

Uma das principais novidades da edição deste ano do IndieLisboa foi a inauguração de uma nova zona dedicada à exibição de todos os filmes enviados para o festival e que por uma qualquer razão não entraram na programação oficial.

Os cerca de 700 filmes (entre curtas e longas metragens; nacionais e estrangeiras) estiveram disponíveis durante todos os dias de festival, a todos os curiosos que desejavam descobrir as películas “fora” de competição.

Para além de um catálogo recheado de motivos de interesse, as condições de visionamento eram excelente; cabines individuais com ecrãs plasma, leitores de DVD/ VHS e auscultadores. O difícil era mesmo escolher.

Os Premiados

Depois de 10 dias cheios de cinema, alguém tinha que sair vencedor. O júri do Indie decidiu-se por atribuir o Grande Prémio de Longa-Metragem (e os respectivos 5000€) ao filme de estreia da alemã Maren Ade, “The Forest for the Trees”, enquanto que a escolha da melhor curta recaiu sobre “Undressing my mother” do irlandês Ken Wardrop que sai assim de Lisboa com mais 2500€ no bolso.

Para além destes prémios, o Júri Internacional decidiu ainda atribuir menções honrosas ao actor Toni Servillo, pela sua interpretação no filme “Le Conseguenxe dell’amore”, de Paolo Sorrentino, e à curta-metragem “Everything was Life”, da realizadora Ellie Land.

O Prémio para Melhor Filme Português (4500€ em serviços de pós-produção) foi entregue a “Adriana”, de Margarida Gil, e o Prémio de Melhor Fotografia para Filme Português (750€ em consumíveis) recaiu sobre “Um Homem”, de Laurent Simões.

O Júri Onda Curta atribuiu o Prémio 2: Onda Curta (que consiste na aquisição de direitos de exibição dos filmes vencedores para o programa “Onda Curta”, exibido no canal 2:, da RTP) aos filmes “Fare Bene Mikles”, de Christian Angeli, “Phantom Limb”, de Jay Rosenblatt, e a “Undressing my mother”, de Ken Wardrop. Este júri decidiu ainda atribuir uma Menção Honrosa a “Compassos de Espera”, do português Pedro Paiva.

A Amnistia Internacional que, pela primeira vez este ano, atribui um prémio no âmbito do festival, escolheu unanimemente o documentário “North Korea, a day in the life”, de Pieter Fleury, e justificou a sua opção da seguinte forma: “A vida quotidiana de uma família com três gerações num dos regimes mais fechados do mundo é mostrada a partir de um ponto de vista interno. O público torna-se testemunha daquilo que parece ser uma vida anacrónica cheia de controlo e doutrina. Graças ao realizador Pieter Fleury espreitámos através das cortinas cerradas da Coreia do Norte de hoje. Quanto tempo faltará para que os Norte-Coreanos tenham a oportunidade de olhar para nós?”

Mas um dos prémios mais importantes do festival é o do público, não por ser aquele que a nível monetário seja o mais aliciante, mas porque é aquele que tem como júri todos aqueles que assistiram às sessões. O conjunto dos espectadores das sessões da Competição Oficial e do Observatório atribuiu o prémio à longa-metragem “Private”, de Saverio Costanzo, no valor de 1000€, e à curta-metragem “Home Game”, de Marti Lund, no valor de 500€.

Retrospectiva

Pelo segundo ano consecutivo, o Indielisboa conseguiu captar a atenção do público cinéfilo da capital, mostrando mais uma vez que existe uma grande curiosidade por parte de todos no que diz respeito ao cinema independente. À semelhança do ano passado, muitas sessões esgotaram e a adesão foi enorme, conseguindo criar um pólo cultural bastante interessante em plena Avenida de Roma.

No ano de arranque do festival, a programação foi um pouco “conservadora”, principalmente na secção Observatório, onde foi focada a secção competitiva, já por si ganhadora, do festival de Sundance. Este ano, a organização decidiu arriscar ainda mais um pouco, principalmente através do ciclo dedicado ao novo cinema argentino. Quem saiu a ganhar foi o público.

A presença do cinema argentino neste festival, para além de servir de mostra para a produção cinematográfica daquele pais, serviu de case studie para a nossa produção. Os filmes que estiveram presentes nesta edição, foram todos produzidos numa época em que a Argentina atravessava uma enorme crise politica e económica, tendo sido feitos “à margem da lei”. Será que o cinema português consegue de uma vez por todas, analisar o que se passa nos outros países e encontrar o seu caminho?

Embora o festival tenha corrido muito bem a nível organizativo, com uma excelente programação e espaços bastantes interessantes (por exemplo o Playground), um dos pontos menos positivos vai direitinho para a falta de um maior número de filmes nacionais, principalmente na competição (nas longas metragens nem existia um filme). Este facto pode ser entendido como uma “chapada” sem mãos de quem está à frente do destino deste festival, mas penso que é sempre de lamentar, porque se não nos ajudamos a nós próprios, quem o fará?

Esperamos que para o ano que vem o Indie regresse à sua base (Cinema S.Jorge), embora esta experiência tenha corrido muito bem.



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