“Odisseia” – Bruno Nogueira, Gonçalo Waddington, Tiago Guedes

“Odisseia”

O objecto televisivo mais transgressor que se viu em Portugal nos últimos anos

Em 2013 estamos num claro e inigualável impasse, enquanto Portugueses. Todos os dias parece que assistimos à devastação da nossa identidade cultural, passando esta para segundo plano no pesadelo ‘ideológico’ de medidas político-económicas, convocadas para salvar o País de um infortúnio iminente. Isto enquanto levianamente se expulsam todos aqueles capazes e dispostos a realizá-lo.

Não deixa, portanto, de ser curioso e desnorteante que, enquanto se discute o significado de serviço público, e a própria RTP se vê também ameaçada pelas medidas infindáveis de cortes de verba e pelo vigente fantasma da “privatização”, se apresente agora aquele que é o objecto televisivo mais transgressor que se viu em Portugal desde 1983 com a concepção de uma pequena série que tudo mudou denominada de “O Tal Canal”.

Três décadas depois, na sombra das audiências das redes privadas, a RTP faz surgir “Odisseia”. E a tarefa de a descrever em forma de sinopse é tão infrutífera quanto infundada; é de exaltar apenas os seus criadores naquela que é despretensiosamente uma “série de autor”, sem vergonha nem condescendência, como nunca antes existiu em televisão portuguesa e como possivelmente jamais voltará a existir. Eles são Bruno Nogueira, Gonçalo Waddington e Tiago Guedes, já “prata-da-casa” e com popularidade suficiente para carregar algo tão volátil para o peso de um horário nobre.

E se os dois primeiros dispensam apresentações, o realizador merece uma apresentação mais alargada. Celebrizou-se no Cinema com o terror muito português de “Coisa Ruim” e, inexplicavelmente, parece ser o seu trabalho mais notório. Mas não o mais notável: em 2008 realizou o brilhante drama social “Entre os Dedos” e para RTP também já tinha feito uma ambiciosa reconstituição da Primeira República, “Noite Sangrenta” – ambas com interpretações colossais de Isabel Abreu. No teatro, a sua marca autoral iniciou-se com o brutal “The Pillowman”, onde trabalha pela primeira vez com Waddington, e atinge recentemente o seu apogeu em teatro em “Blackbird”, também com Abreu e Miguel Guilherme, uma devastadora violação psicológica a dois corpos.

Em Tiago Guedes assentam os alicerces da estrutura de “Odisseia”, predominantemente cinematográfica, mas também cinéfila. Da sua própria identidade, enquanto autor, são inumeráveis as referências ousadas quanto ao próprio conteúdo, viajando por entre Wim Wenders, Martin Scorsese e Wong Kar Wai, sem pestanejar nem sequer indagar que poderão ficar perdidas na tradução.

O tremendo valor da linguagem, ou neste caso metalinguagem, aqui empregue, reside precisamente no facto de ser independente de reconhecimento e existir para além de todo o simbolismo que premeia a série. Não é mero acaso que a “embarcação” dos nossos (anti-)heróis tem o nome “Calypso”, a ninfa que aprisionou Ulisses num doce feitiço durante anos na “Odisseia” de Homero. Também nesta Odisseia moram sereias, bruxas e deuses, entre os quais António Variações, o transgressor original, que num dos pontos altos da série surge como fruto de uma alucinação colectiva e direcciona os heróis para bom porto.

É este o palco sob o qual Nogueira e Waddington deambulam, em versões hiperbolizadas deles mesmos mas não por isso menos verdadeiras. Os dois actores (e argumentistas) gerem a comédia de forma virtuosa, com base tanto no improviso quanto na amizade tangível que partilham e que carrega todo o sentido da viagem. Juntos, enveredam num processo de criação colectiva de um novo género televisivo assente na liberdade artística acima de todas as outras prioridades. Desprovido de uma linha narrativa rapidamente identificável e perceptível, reminiscente de outra revolução recentemente erigida pelo monstro da comédia Louis C.K. em “Louie”. Algo que para o público de hoje, pouco habituado a ser desafiado, é assustador e um risco tremendo que poucos estão dispostos a correr no medo de alienar aqueles que estão do outro lado do televisor, desprovendo-os assim de livre-arbítrio e de qualquer resquício de inteligência. Mas não aqui.

O enredo começa por incidir numa viagem espontânea numa auto-caravana enquanto fuga da realidade sufocante e tóxica de Lisboa. Mas é daí que o escape deste quase road movie se distancia do conceito de realidade dentro da ficção, sem jamais escolher um único tom ou género, estando a narrativa a ser consistentemente invadida pela balbúrdia dos bastidores da própria produção. E pelas insistentes e esquizofrénicas mudanças de rumo dos seus criadores, seres omnipotentes, que tudo controlam a partir de um escritório, não só aquando do processo de escrita, mas durante as próprias filmagens.

O resultado é uma fascinante amálgama de auto-reconhecimento, muitas vezes documental, que a separa ainda mais do que é “real” para junto de um surrealismo exacerbado. Um dos exemplos é a brilhante incorporação do cancelamento da série na própria narrativa, levando muitos a acreditar que tinha sido mesmo uma decisão da RTP e não fruto da imaginação dos autores. Missão (perfidamente) cumprida.

Assim, reina a extasiante e deliciosa anarquia de “Odisseia”: nas personagens múltiplas do negligenciado “Actor”, Nuno Lopes, que só consegue viver verdadeiramente se estiver nelas imerso. Ou o revelador caos trazido pelo tenebroso e hilariante arauto de destruição que é Rita Blanco.

Nos momentos de humor cáustico, de absurda e galopante escatologia, consegue-se morar ao lado de profundas e dramáticas deambulações, sob a condição do ser humano e da sua incapacidade inata de determinar um destino, antes de estar irrevogavelmente acorrentado ao seu caminho.

Sem estragar nada, “Odisseia” termina num comovente momento, protagonizado novamente por Variações, na voz de Camané, com «Adeus Que Me Vou Embora». É neste momento de ambivalência emocional que definitivamente reside a certeza de que esta série – na nostalgia da saudade ainda antes da despedida, na postura auto-depreciativa e politicamente incorrecta, no desalento premente atenuado pela esperança de outro amanhecer e em tantas outras coisas – não podia encontrar qualquer outra nacionalidade e ter sido conjurada por alguém que não fosse genuinamente e fatalmente Português. Que orgulho.

 

Ler entrevista exclusiva aqui.



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