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Odisseia Disco

do underground para o mainstream e de volta para o underground.

No início não existia nenhuma designação específica para a música que era tocada nas chamadas discotecas. Dentro de vários estilos, fosse Funk, Soul, Jazz, Rock, Latino-Americana,  Africana, etc, desde que fizesse dançar, era o que importava e assim foi até mais ou menos 1974/75, sobretudo em locais onde predominavam fortes comunidades negra, hispânica ou gay.

No início a palavra “Disco” era apenas um termo usado pelos habituais frequentadores, para representar música  tocada em discotecas, fosse qual fosse o estilo (por exemplo, um tema de origem africana, como o Soul Makossa de Manu Dibango, não sendo propriamente Disco, era assim apelidado por ser tocado em discotecas). Mas foi por volta dessa altura que começou a aparecer música feita de propósito para ser tocada nesses locais (ex: Rock Your Baby de George McRae ou The Hustle de Van McCoy) e que começaram a ser sinónimos de Disco Music ou da mais familiar designação de Disco-Sound.

O som Disco dos primórdios, de origem norte-americana, ainda estava muito ligado às cenas Funk e Soul, mas o que de certa forma o diferenciava era ter uma base 4×4 mais uptempo, de forma a puxar pelo frenetismo dançante na pista. No início, só algumas cidades norte-americanas se regiam pelo fenómeno Disco, sobretudo as mais cosmopolitas e onde a população, no geral, tinha uma mente mais aberta, como Nova-Iorque (basicamente a cidade que originou o movimento), Chicago, Filadélfia, Miami, São Francisco, Detroit ou Los Angeles. Mas não tardou muito para que cenas mais underground começassem também a surgir em cidades mais conservadoras – assim como no vizinho Canadá, e até através do Atlânticoem países como o Reino Unido, França ou Alemanha.

Mas se no Reino Unido se seguiam as tendências Disco norte-americanas, e a pouca produção britânica feita seguia esses trâmites, em países como a França ou a Alemanha a história era bem diferente… Ouvindo produções de nomes como Cerrone, Alec R Costandinos, Boris Midney ou Giorgio Moroder dá para perceber as diferenças que existiam na altura entre a produção Disco norte-americana e a europeia.

Se a produção norte-americana, tal como foi dito atrás, ainda era devedora a uma estética mais R&B fortemente influenciada pela música negra, a europeia, embora não renegando essa influência misturou-lhe outros condimentos. Um deles era alguma influência da música clássica nas orquestrações, fazendo-as soar luxuriantes (ainda mais do as orquestrações já de si luxuriantes do Soul/Funk de Filadélfia). Luxuriantes também eram as vocalizações, sempre com forte entoação sensual, para não dizer sexual… (as capas do Cerrone e da maioria dos artistas do que se convenciounou chamar Euro-Disco bem o demonstravam).

Outra das diferenças foi uma forte evidenciação da secção rítmica (baixo e bateria), com um forte pulsar 4×4 que inegavelmente apelava à dança e a aplicação das novas tecnologias. Numa Europa mais ousada era natural que os experimentalismos electrónicos de uns Kraftwerk, se tentassem aplicar ao Disco – o que foi levado a bom termo em músicas como Supernature de Cerrone ou I Feel Love de Donna Summer (produzido por Giorgio Moroder). Logo, muitos temas de origem europeia começaram também a fazer estragos em pistas de dança norte-americanas e a influenciar muitos produtores norte-americanos que demonstraram não ter problemas nenhuns com a inspiração europeia.

Obviamente, em locais como o Gallery (Nicky Siano), o Loft (David Mancuso), o Paradise Garage (Larry Levan, e que abriu em 1976) ou o Galaxy 21 (Walter Gibbons), ninguém dava importância a  designações que a imprensa dita especializada inventava… desde que a música fosse boa e os clientes dançassem, tudo bem. A cena Disco continuava a crescer e cada vez atraia mais pessoas, cada vez abriam mais espaços que passavam Disco, e que por vezes funcionavam como cafés ou restaurantes que a partir de certa altura da noite transformavam-se em autênticas discotecas, bastando apenas desviar as mesas e pôr música a tocar mais alto.

Foi por esta altura que indivíduos como Tom Moulton e Walter Gibbons deram o seu enorme contributo à cena. Ambos eram produtores (embora Gibbons viesse da escola do Djing) e ambos revolucionaram a forma como um tema Disco deveria soar, para que tivesse o maior impacto possível numa pista de dança, repetindo o que para eles eram as melhores parte de um tema. A diferença era que Tom Moulton dava um maior enfâse à canção, e Walter Gibbons um maior enfâse à parte instrumental, não tendo qualquer problema em reestruturar um tema do início ao fim, e se a canção sofresse era um mal menor.

Foi Tom Moulton que, inadvertidamente, deu origem ao 12”, quando ao querer prensar em vinil um tema de Al Downing, e sen acetatos de 7”, apenas de 10”, decidiu-se prensar o tema neste formato. Para que não ficasse tão compacto, decidiu alargar as estrias do vinil e quando se acabou a prensagem, verificou que o som saía com muita qualidade. O tema seguinte produzido por Tom Moulton, So Much For Love dos Moment Of Truth, esse sim acabou por ser gravado no formato 12”. Mas o primeiro 12” a ter edição comercial (ou seja, que não era uma cópia promocional apenas para ser entregue a DJs) foi Ten Percent dos Double Exposure, nem de propósito misturado por…Walter Gibbons.

Entretanto alguém decidiu levar ao cinema esta euforia que se estava a criar em torno do Disco. Baseado num artigo publicado na New York Magazine em 1975 (“The Tribal Rites Of The New Saturday Night” de Nik Cohn), o filme Saturday Night Fever representava uma versão, digamos, saneada, do que era uma noite numa qualquer discoteca nova-iorquina dos subúrbios ao som frenético do Disco. Saneada, porque não representava as verdadeiras origens da cena Disco, que eram sobretudo negras, hispânicas e gays (que embora surgissem no filme, eram tratadas de uma forma quase caricatural), embora não deixasse de ser uma representação legítima de estilos de vida, de desejos ou de aspirações de certas franjas da sociedade norte-americana da altura.

A verdade é que o filme teve um sucesso estrondoso, e consequentemente introduziu muita gente à nova religião do Disco. Se o Disco já estava a crescer como movimento, pode-se dizer que após os passos de dança do John Travolta, cresceu a um ritmo bastante mais acelarado. De repente, dos 7 aos 77, toda a gente gostava de Disco, e durante dois anos (de 1977 a 1979) o Disco foi a grande loucura praticamente a nível mundial. Nunca se produziu e consumiu tanta música Disco como nessa altura, e até artistas que não tinham nunca tido nada a ver com o movimento editaram o seu single ou albúm de Disco (até a Disney editou um disco com o Rato Mickey e outras personagens a cantar sob um fundo Disco). Foi uma enorme massisificação do estilo, tanto a nível musical, como de moda, como de estilo de vida, acabando por subverter a verdadeira essência que havia criado o movimento.

Havia clubes como o Studio 54 ou o Xenon que eram de certa forma elitistas e que não davam acesso a qualquer um que quisesse lá entrar. Não que clubes como o Loft ou o Paradise Garage também não fossem de certa forma elitistas, por ser necessário ter um cartão de membro para entrar, mas quem era membro podia levar uma pessoa consigo e qualquer um podia concorrer para poder ter acesso ao mesmo, enquanto que no Studio 54 era tudo completamente aleatório, num dia podia-se entrar e no outro não, para além que o Studio 54 acabava por ser um sítio para onde as celebridades iam desfilar e muita  pessoas, mais do que propriamente dançar,  queriam fazê-lo ao lado de uma qualquer celebridade, enquanto que no Paradise Garage as pessoas iam lá mesmo pela música, para dançar, para serem surpreendidas.

O público que consumia Rock sentiu-se importunado com tanta atenção dada ao Disco (apesar de haver artistas Pop/Rock que tinham temas de Disco, como Rod Stewart, Blondie, Squeeze, Abba, e até os Bee Gees, que eram uma banda que provinha de um contexto Pop/Rock, mas que graças aos temas que produziram e interpretaram para a banda-sonora de Saturday Night Fever, eram vistos pelo consumidor comum como os reis do Disco).

Em parte foi esta saturação  que levou ao “Disco Demolition Derby” (onde se destruiram inúmeras cópias em vinil de música Disco) no Comiskey Park de Chicago. Para muitos dos fãs de Disco, este foi um dos eventos que marcou a viragem e que fez com que o Disco começasse a desaparecer a pouco e pouco do “mainstream”, embora na minha humilde opinião isto só tenha acentuado o que já estava a acontecer. A massificação do fenómeno estava a durar demasiado, saíndo muita música de má qualidade rotulada como Disco e os próprios DJs estavam a ficar fartos de tanto sub-produto.

Era inevitável que o consumidor comum, mais dado ao que é ou não moda, mais cedo ou mais tarde se fartasse do Disco e se virasse, por exemplo, para o emergente, na altura, fenómeno New Wave (que, ironicamente, também ocasionalmente ia buscar coisas ao Disco…). Quem gostava realmente de Disco e congéneres, ou quem simplesmente queria dançar a boa música, independentemente do estilo, pôde continuar a fazê-lo em paz, pois sítios como o Paradise Garage, o Loft, o Trocadero Transfer de São Francisco ou o Warehouse de Chicago continuaram a existir calmamente durante  uns bons anos, passando ao lado da euforia que se criou e sobrevivendo bastante bem quando ela passou. Até porque os residentes de ambos os sítios tinham gostos musicais bastante amplos, e mais uma vez, estavam-se nas tintas se o que passavam era Disco, ou Boogie, ou Hip-Hop, ou New Wave ou outro estilo qualquer que a imprensa tinha inventado… a malta dançava, não dançava? Então estava-se mesmo bem!

Deixou-se de usar o termo Disco e passou-se a usar o termo Dance Music (mais nos Estados Unidos, até porque na Europa nunca houve problemas com o nome Disco…Italo-Disco, anyone?), embora durante grande parte dos anos 80 (digamos que até ao advento do House, que basicamente é um “filho” do Disco) tenha continuado a existir muito Disco, e os seus ecos continuem a existir até hoje…Mesmo quando estilos como o Synth-Pop ou o que se designou como Novos-Românticos surgiram, continuavam a ser fortemente influenciados pelo Disco (por muito que o quisessem negar).

Hoje em dia parece haver um ressurgimento do Disco, com nomes como Hercules & Love Affair, Escort ou as festas Horse Meat Disco, tanto criando-se temas que respeitam os canônes criados na 2ª metade dos anos 70 e início dos 80, como passando e recuperando muita coisa que não merecia a ganhar pó.

Em jeito de conclusão, é engraçado ver como muito do sub-produto que foi editado algures entre 1977-79 acabou por ter a sua utilidade, pois apesar de tudo era possível encontrar nele algo que podia ser re-utilizado, caso caíssem na mão de mestres do re-edit, como o são Loud E, Rub N Tug, Social Disco Club, Pedro Tenreiro, Idjut Boys, Rune Lindbaek, Greg Wilson ou Prins Thomas…



Existem 4 comentários

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  1. jdmoreira

    Grande artigo eduardo.
    Permite-me só que discorde em relação a impressão que transmites que alguns dos re-edits desta geração nu-disco (tenho medo destas labels) vá buscar algum sub-produto… Discordo.
    Exemplo disso é a Man of Magic do Humberto (só 1 exemplo), o original de Sarr Band (Magic Mandrake) é talvez das melhores músicas da cena Disco… simplesmente nunca atingiram aquele status de cliché, e é por isso que hoje ainda podemos ficar contentes por descobrir pérolas quase todos os dias (falo por mim).

    Cumps.

  2. jdmoreira

    Já agora, e dado que ainda ontem estive a ver o 'Maestro', uma ideia que passa sempre quando lemos acerca do paradise, loft, etc.. é o cuidado enorme que o pessoal tinha com o soundsystem e com o mastering, o próprio larry levan é muitas vezes mencionado com um tipo extremamente técnico ao nível do signal path.

    Hoje em dia os Djs vão tocar a um lado qualquer pela primeira vez, nem conhecem o equipamento e o soundsystem e espetam-lhes com 2 pratos e um mixer digital à frente e that's it, nem lhes dão acesso ao resto da rack (se é que existe).

  3. EduardoMartins

    João, obrigado pelos comentários :D .

    Em relação a discordares que alguns dos mestres do re-edit vão buscar coisas a sub-produtos, tanto o Loud E como o Pedro Tenreiro admitem publicamente terem feito coisas (na minha opinião muito boas ) a usar o tal sub-produto…Se puderes, hás-de ler uma entrevista que o Pedro Tenreiro deu à Slang há uns anos (entrevista feita até pelo Zé "Major" Moura da Flur).

    Muitas vezes no sub-produto encontram-se secções rítmicas bem fixes, estragadas por orquestrações e/ou vozes bem foleiras…Um mestre dos re-edits aqui age como um autêntico cirurgião, removendo de forma quase clínica o que não interessa…

    A grandeza do original de Sarr Band (e, já agora do "re-edit" do Humberto) nem sequer se põe em questão…


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