Optimus Primavera Sound 2013 | Dia #2 (31.05.2013)
Cidades fantasma e demência, ao segundo dia
À chegada ao recinto, deu logo para perceber que estava muito mais gente do que no dia anterior, não só por ser sexta-feira mas principalmente pelos cabeças-de-cartaz. Quando veio a hora do concerto dos Blur, os outros palcos quase vazios, cidades fantasma a que só faltavam as bolas de feno, esse facto tornou-se inegável: o público tinha vindo em massa para os ver e preenchia o vasto relvado em frente ao palco. Não me arrependo, porém, de os ter trocado pelos Do Make Say Think: essa decisão estava tomada muito antes de pôr os pés no Parque da Cidade e petiscar os concertos de Local Natives e Daniel Johnston, sobre os quais não posso escrever muito, pois estava mais atento às belezas do entardecer no esplendoroso parque portuense. Foi também uma oportunidade de fazer o reconhecimento dos palcos a que não tinha ido na quinta-feira e descobrir, por acaso, onde se fazem aquelas coroas de flores primaveris que os espectadores e alguns músicos (Damon Albarn, mas também Steve Albini e Bob Weston dos Shellac) fizeram questão de usar na cabeça.
Pelo que pude “ver” do encore dos Blur – a grande distância do palco, nos enormes ecrãs que o ladeiam -, não houve motivos para o arrependimento que quase cheguei a sentir. Não é que me tenha parecido mau, nada disso, havia um coro e uma secção de sopros a acompanhar o quarteto inglês, num espectáculo muito bem montado, e, com certeza, que as expectativas daqueles que aguardavam ansiosamente pela reunião da banda não saíram defraudadas. Só que, apesar de simpatizar com os Blur e de gostar muito de algumas canções (uma delas, «The Universal», ainda pude ouvir), nunca foram uma das “minhas bandas”. E esta, como outras instâncias deste festival (e de outros; de todos, na verdade), foi mais um momento de nostalgia por um tempo de juventude que não voltará mais. Mesmo para Damon Albarn, entretido com mil e um projectos nos últimos anos, esta terá sido apenas uma ocasião de reencontrar velhos amigos (os outros membros da banda e o público que os venera).
Enquanto escrevo estas linhas, fechado no quarto de uma pensão da Boavista num bonito dia de sol, ouço uma louca num dos outros quartos, que só posso presumir que seja residente, a protestar. A senhora, que nunca vi e provavelmente não verei, uma Carlotta Valdés que em vez de clamar pela filha perdida grita constantemente por uns lençóis limpos (vai-se a ver e não é doida de todo, que esta pensão não prima pelo asseio), já me acordou hoje de manhã e promete fazer o mesmo amanhã.
Não vou tão longe a escrever que Michael Gira sofre do mesmo tipo de demência, mas de alguma sofrerá. O concerto dos Swans envolve uma massa de som malsã que brota da perturbação de Gira – nova-iorquino que prefere um chapéu de cowboy às coroas de flores – para os amplificadores e faz com que o pôr-do-sol tome tonalidades verdes como numa qualquer praga bíblica (ia escrever como no “Le rayon vert” de Rohmer, o que não faria sentido). Ou como um pesadelo que se sonha acordado, em que os demónios (sem as aspas que mereceram os do concerto de Nick Cave, mera pose de artista) se soltam para a vida real, normal, um lembrete que há forças primordiais com as quais não nos devemos meter sob o perigo da loucura. Adolfo Luxúria Canibal, que tocava à mesma hora com a sua Mão Morta, deve ter ficado bastante triste de não ter podido assistir ao concerto. [E, de repente, exactamente quando escrevo este parágrafo, a louca espreita pela varanda do lado (está no quarto ao lado, descubro agora), a perguntar se eu não tenho qualquer coisa que lhe pertence. Digo-lhe que não, até por que ela não especificou o que poderia ser a tal coisa. Quando muito, roubei-lhe um pouco da sua história, que desconheço quase por completo, para dar vida a esta reportagem. Mas isso não lhe digo.]
Para ultrapassar a claustrofóbica sensação que o concerto dos Swans deixara, nada melhor do que a leveza dos Melody’s Echo Chamber, música ligeira e florida (embora ninguém usasse as famosas coroas, um dos guitarristas tinha uma camisa estampada), com sabor a pop francesa dos anos 60, a sintetizadores dos anos 80 e, apesar dos devaneios de guitarra mais estridentes, ao género a que se chamou twee. Portanto, a banda-sonora ideal para esta estação do ano. Ninguém terá dado o tempo por perdido, até porque daqui a uns dias pouca gente se lembrará que o perdeu.
O mesmo não se pode escrever dos geniais Shellac, banda residente do Primavera Sound (ou muito me engano ou estiveram presentes em todas as edições), cujo concerto ficará para sempre guardado como uma bela memória. Pelo que conhecia do discurso de Steve Albini, sempre muito crítico em relação à indústria musical, muito picuinhas quanto ao som dos discos que vão saindo (Albini é conhecido, sobretudo, como produtor), esperava tudo menos o incrível espectáculo de comédia que ele, Bob Weston (também produtor) e o baterista Todd Trainer proporcionaram, uma playfulness que até pode ser ensaiada (o concerto termina com a banda a desmantelar a bateria enquanto Trainer continua a tocar) mas é perfeitamente irresistível. Quanto à música, que também interessa, uma vez que escrevo sobre um festival dela, é quase uma paródia do rock (no bom sentido), uma versão tão esquelética, tão precisa, tão essencial do género que deixa à mostra as gorduras desnecessárias das dos outros praticantes (e, nem por acaso, nos intervalos das canções, ouvia-se a música dos Grizzly Bear, vinda de um palco próximo). Se as raízes no hardcore, de onde saíram algumas das melhores bandas das últimas décadas do milénio passado, são evidentes, os Shellac, por via do minimalismo musical, chegam a uma espécie de funk, gingão e certeiro. Óptimo concerto.
Por esta altura, já começava a romaria para o concerto dos Blur, e, se o espaço onde os Metz emulavam na perfeição o grunge se encontrava cheio quando lá fui parar, foi-se esvaziando aos poucos, resistindo sobretudo aqueles que praticavam com zelo o mosh e o crowd surfing em frente à banda (provocando um aviso do baixista, a pedir cuidado para que ninguém se magoasse). Depois, restou a tal cidade fantasma de que falava no início do texto. Por momentos, pensei que os Do Make Say Think tocariam só para mim e mais uns quantos, uma pena dado o brilhante concerto que deram, mas também uma alegria por fazer parte dos happy few que estão a par de um segredo bem guardado. Os canadianos, cultores de um pós-rock próximo do jazz – não faltaram os instrumentos de sopro, soprados pelos próprios (não havia banda de apoio como nos Blur), nem a riqueza rítmica, providenciada por duas baterias -, fazem uma música em crescendo – de um acorde nasce um turbilhão sonoro, paradoxalmente relaxante – que envolve o espectador, o enleva e, por fim, eleva o seu espírito.
Antes de me ir embora, ainda apanhei um bocadinho do concerto dos Glass Candy, uns Suicide (a comparação vem do casaco de cabedal de Johnny Jewel, sozinho ao sintetizador, apesar do corte de cabelo ser mais Ramones) que em vez de um vocalista beligerante armado em Elvis têm uma loiríssima diva que, qual Nico, debita friamente umas palavras sobre as batidas disco. Não fosse a dor nas pernas que já não permitia grandes movimentos (a idade não perdoa) e teria ficado a dançar como se fosse 1982. Fica para a próxima.
Fotografia por Graziela Costa
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