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Panorama 2011

Mostrar o Documentário Português.

O sucesso de “José e Pilar”, de Miguel Gonçalves Mendes, o maior número de estreias de documentários portugueses em sala, assim como o êxito das últimas edições do DocLisboa, fazem crer que a popularidade do filme documental tem crescido nos últimos anos. Se essa impressão é difícil de desmentir (embora se possa afirmar que certos filmes granjeiam espectadores pelas figuras de que tratam), não esconde o facto de que o público para este cinema ainda é relativamente curto. O Panorama, enquanto montra e mostra dos documentários feitos no ano anterior no nosso país, é prova disso. Ao contrário do “parente rico” DocLisboa, que se alastra por várias salas da cidade, cinge-se, à quinta edição, apenas a uma das mais pequenas do Cinema São Jorge.

Parece-me, no entanto, que na base desta “invisibilidade” encontram-se dois outros problemas (que, no fundo, são um só): falta de identidade e um peso excessivo das restrospectivas. Boa parte das sessões, incluindo as de abertura e encerramento, foram dedicadas aos filmes do PREC (Processo Revolucionário Em Curso), que, apesar de originarem uma importante discussão (é vital lembrar a História do cinema de um país e, por conseguinte, a História de um país), ofuscam os restantes filmes apresentados e que deveriam ser a essência da Mostra. Aqui entra a falta de identidade.

Pouca gente identificará o Panorama por aquilo que é — uma mostra do documentário português, que permite descobrir ou redescobrir, entre algumas estreias, obras que tenham passado despercebidas na imensidão de filmes do IndieLisboa e do DocLisboa e ter uma noção geral da produção nacional do último ano. Já na anterior edição a retrospectiva do cinema de António Reis (que, diga-se, é o grande cineasta português de que menos se fala) tinha tomado todas as atenções. Esclareça-se que não pretendo tirar o valor a estes olhares sobre o passado, mas julgo que é urgente um maior equilíbrio na programação.

O último ano do documentário português

Ainda que todos pertencentes ao campo oposto do da reportagem televisiva — com as suas cabeças falantes e narrativas mais evidentes —, os recentes filmes documentais podem dividir-se em quatro vertentes: o filme-retrato (geralmente de artistas de outras artes, usualmente, visuais); o filme-diário; o filme-rítmico ou abstracto; o filme de personagens (que apresenta alguns pontos de contacto com a reportagem televisiva, mas que se distancia dela, como se verá).

Na categoria do “filme-retrato”, o melhor exemplo (no duplo sentido) será “Pelas Sombras”, de Catarina Mourão, sobre a artista Lourdes Castro, que vive agora recolhida na Ilha da Madeira de onde é originária. É um filme que se deixa contaminar pela própria obra da retratada — e, aí, o título é justíssimo —, mostrando também, como que sem querer, uma imensa saudade que esta quer esconder (manter na sombra). Não é por acaso que a realizadora partilhou a autoria do seu filme com Lourdes Castro, quem assim se põe vulnerável frente a uma câmara, dá tudo de si. Em “Pedro Calapez – Trabalhos do Olhar”, de Luís Miguel Correia, embora não haja essa partilha de autoria, existe um maior controlo do retratado Pedro Calapez sobre a sua persona. O artista chega, inclusive, a expor o documentário logo ao início (os documentários ainda vivem dessa ilusão de realidade, quando são tanto mais interessantes quando assumem a sua condição de ficção, de outro tipo de ficção). “Traces of a Diary”, de Marco Martins e André Príncipe, fica a perder face a estes dois, quando os dois realizadores esquecem as suas personagens — os fotógrafos japoneses — e viram as câmaras para si mesmos.

No registo diarístico, “Trésor”, de Rita Brás, conseguiu ser o filme mais desinteressante de toda a Mostra, indulgente no seu turismo cultural, prenhe de visões (e crendices e descoberta de supostas raízes) de bilhete postal da viagem da autora ao Brasil. “Estrangeiro”, de Ivo M. Ferreira, por ficcionar uma investigação quase detectivesca do realizador em busca de uma versão anterior de si mesmo, alcança sem dificuldade um outro patamar, dir-se-ia que alcança o cinema, enquanto que o filme de Rita Brás se fica por menos do que televisão. Embora não se inscreva tão facilmente no filme-diário, “Ângulo Morto” regista momentos da vida da sua autora; Regina Guimarães encena uma certa auto-biografia da cidade (as traseiras de prédios do Porto) em que se reflecte a si mesma. Um exercício interessante da poetisa, dramaturga, videografa e letrista de canções dos Três Tristes Tigres (aos quais pertenceu, embora tenha sido sempre um corpo ausente).

Miguel Guimarães Rosa e Daniel Sousa apresentaram “A Máquina”, o seu filme sobre todos os preparativos de um jogo de futebol, normalmente invisíveis para o adepto, descrevendo o Estádio de Alvalade como um organismo vivo. Todos os filmes que catalogo como rítmicos — “Wolfram, a Saliva do Lobo” de Rodolfo Pimenta e Joana Torgal (sobre as minas da Panasqueira); “Golden Dawn” de Salomé Lamas (sobre a pesca em alto mar); “Como as Serras Crescem” de Maria João Soares (sobre salinas algarvias)— olham um organismo vivo. Um olhar hipnótico (hipnotizado) sobre o ritmo do trabalho braçal, a constância dos movimentos, os rituais consagrados. São filmes quase abstractos (fogem, felizmente, a qualquer ideia de “realismo”), hipnagógicos, que põem o espectador entre o estado de vigília e o sono (isto é um tremendo elogio). Só falham quando se tentam explicar (caso do enxerto de uma canção de mineiros no fim do até aí fabuloso “Wolfram…”).

O vencedor da competição portuguesa do último DocLisboa, “Li Ké Terra”, de Nuno Baptista, João Miller Guerra e Filipa Reis, é um belíssimo exemplo do documentário de personagens: Tibars e Dibela são óptimos, interesantíssimos, e reflectem a sua realidade (a de “imigrantes” na terra onde nasceram) melhor do que cem palestras e análises sociológicas. O que distingue este filme, “Snack-Bar Aquário” de Sérgio da Costa (sobre um snack-bar de uma aldeia perdida), “Nocturnos” de Aya Koretzky e Rodrigo Barros (sobre indigentes em albergues lisboetas), “Cátia Sofia” de Miguel Clara Vasconcelos (sobre uma adolescente revoltada), e “Quem Mora na Minha Cabeça” de Miguel Seabra Lopes (sobre doentes com Alzheimer) da reportagem televisiva é, tautologicamente, o seu cinema, o olhar. O espectador identifica-se com as personagens, mas nenhuma narrativa lhe é imposta, é ele mesmo que a tem de montar, num jogo de participação que não se compadece com a lógica da televisão ou até com a daquela corrente de documentários de denúncia, obras meramente panfletárias. De certo modo, estes filmes confluem num aproximar da ficção e é nessa confusão, nessa contaminação que ganham uma dimensão diferente.

Entre estes dois últimos registos, “Comboio”, de Isabel Dias Martins, e “Há Tourada na Aldeia“, de Pedro Sena Nunes, preocupam-se ao mesmo tempo em estabelecer a beleza do movimento e na apresentação de personagens. “Comboio”, sobre os emigrantes que viajam no Sud-Express para matarem saudades da família, para regressarem ao trabalho e sobre a máquina Sud-Express propriamente dita, ganha à desconcentração e ao abuso de ralentis (e à música penosa) de “Há Tourada…”, que desperdiça um tema interessante — as festas de Verão nas pequenas aldeias raianas, em que a tourada é a atracção principal.

Fora destas categorizações, “Fantasia Lusitana”, de João Canijo, é um retrato de uma personagem (o povo português), um movimento em direcção à irrisão, um diário de uma ficção encenada durante quarenta e oito anos pelo regime fascista. É também o filme que melhor dialoga com os da retrospectiva do PREC.

O PREC

O Processo Revolucionário em Curso — o período entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975 — é um dos momentos mais importantes da nossa história recente, a base onde se sustenta a nossa democracia. Também um dos mais esquecidos, em favor de uma versão higiénica de uma revolução florida e solarenga (quando há espaço para qualquer versão, e cada vez haverá menos).

Foi uma altura conturbada, de lutas ideológicas nas diferentes eleições, na rua, nas rádios, nos jornais, nos filmes marcadamente militantes. Tanto “Scenes From the Class Struggle in Portugal”, dos americanos Robert Kramer e Philip Spinelli, como “Deus, Pátria e Autoridade” e “Bom Povo Português” (este já em perda), ambos de Rui Simões, e, de algum modo, mais frio e distante, “Gestos e Fragmentos”, de Alberto Seixas Santos, representam uma esquerda para lá do PCP, que tinha Otelo Saraiva de Carvalho como herói, e será a grande derrotada do Processo. Por mais nada, estes filmes servem como lembrança da violência que por pouco não eclodiu.

“As Armas e o Povo”, do Sindicato dos Trabalhadores da Actividade Cinematográfica (o único filme colectivo, segundo Fernando Matos Silva, que o montou), é ainda da Primavera da Revolução, de alegria, não desmancha a versão risonha do 25 de Abril e do primeiro 1 de Maio em liberdade, mas lança as sementes das diferenças de Mário Soares e Álvaro Cunhal, que se colocarão em campos opostos na vida política desses anos (até certo ponto; se o PCP não tivesse assentido o 25 de Novembro, a história poderia ter sido diferente).

“Continuar a Viver ou Os Índios da Meia-Praia”, de António da Cunha Telles, sobre um grupo de pescadores que decide construir o seu bairro (a pobreza que se vê nos filmes deste tempo é aterradora; em abono da democracia e da Europa, muito mudou), apresenta as fissuras no discurso da direcção ao socialismo e os seus problemas práticos (e é um belíssimo filme-rítmico à sua maneira), enquanto que “Fatucha Superstar – Ópera Rock… Bufa”, de João Paulo Ferreira, e “Que Farei Eu com Esta Espada”, de João César Monteiro, gozam da liberdade temática e formal que a Revolução permitiu. “Fatucha…” nem sequer é um documentário, mas documenta essa mesma liberdade, essa é a sua força maior.

Mas nenhum destas longas-metragens chega à beleza da curta “O Encoberto”, de Fernando Lopes, sobre o descerrar da estátua de D. Sebastião, de João Cutileiro, em Lagos. Nela se observa o eterno desejo de uma figura salvadora (ainda um dos pecados do povo português) e um certo funeral que passa em qualquer altura, de Revolução ou não.



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