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“Pessoas decentes” de Leonardo Padura

Havana a dois tempos.

Há escritores que nos marcam. Artistas que através da sua extrema capacidade de inventar e partilhar uma narrativa preenchem lacunas, sejam em termos da própria História ou numa perspetiva mais emocional de um acontecimento, lugar ou país.

O cubano Leonardo Padura circula nessa exclusiva órbita artística e encontrou em Mário Conde o veículo das suas obras, personagem de corpo inteiro que “rivaliza” com nomes como Javier Falcón ou Gabriel Allon, epicentros das obras maiores de Robert Wilson ou Daniel Silva, cujas coleções de títulos nos fazem viajar por um universo definido como de policial literário, seja mais ou menos “musculado” ou cinematográfico.

O resultado são livros extraordinários que cativam desde a primeira página, algo que acontece, naturalmente, com Pessoas Decentes (Porto Editora, 2023), o mais recente tomo das peripécias investigativas de Mário Conde e (quase) habituais comparsas, falemos, por exemplo, da sua companheira de vários anos e aventuras, Tamara, ou velhos amigos como Carlos, o Magricela, ou Yoyi, o Pombo, entre outros.

E, mais do que nunca, a palavra “velhos” assenta cada vez melhor nos personagens de Padura, em especial em Conde, pois o acumular dos anos tem-no afetado física e emocionalmente, e, simultaneamente, apurando os seus níveis de desilusão e sentido de desesperança, seja para consigo como para o que o rodeia.  

Isso faz com que substitua uma suposta reforma tranquila com a mulher da sua vida, depois de 30 anos enquanto policia, por atividades que o mantenham vivo e economicamente sustentável, seja vender livros usados, trabalhar como segurança ou retomar os passos enquanto investigador, especialmente na Havana de 2016 que recebe, espante-se!, a visita de Barack Obama, um concerto dos Rolling Stones ou um desfile Chanel. 

Por esse contexto, a capital de Cuba, outrora referida como a Nice da América, encontra-se num turbilhão social que compreende os preparativos para a receção a Obama e Sir Mick Jagger e companheiros de estrada. Mas, para Conde, o alerta dispara quando é encontrado o corpo mutilado de Quevedo, importante ex-comissario cultural, que, durante a sua governação, deixou dezenas de artistas na miséria para glorificar o regime de Castro. Na sequência de tal, Conde é contactado por Manuel Palácios, seu antigo colega e agora tenente e responsável máximo pela investigação deste caso de contornos macabros e violentos.

É dessa forma que Conde começa a intervir no caso, sendo-lhe pedida a máxima discrição sobre a identidade do, supostamente, assassinado. Mas tudo muda à medida que são descobertas mais vitimas e Mário Conde deduz (sim, os pressentimentos de Conde continuam apurados…) que as mortes têm relação com outros assassinatos cometidos em 1910, também em Havana, tendo como figuras centrais Alberto León, um proxeneta com ambições políticas e o inspetor Arturo Saborit, uma espécie de alter ego de Conde no inicio do século XX.
Pelo caminho, há também a omnipresença de Napoleão Bonaparte, referências ao cometa Halley (lembra-se?) e um horror a um regime que transforma criminosos em “heróis” e pessoas comuns, e decentes, em vitimas à beira do colapso, onde o suicídio por ser a única saída.

Todos esses contornos transformam Pessoas Decentes, tal como o autor confessa nas derradeiras páginas do livro, «talvez, o mais policial dos enredos que escrevi», assim como um fiel retrato, apaixonado e maravilhosa e subtilmente escrito, de um país assaltado pela corrupção e sujidade social e em que o povo, as pessoas, morrem de fome enquanto outros somam privilégios à conta da violência e corrupção.

Felizmente, Padura continua a ter a coragem de construir belas narrativas a partir da sua experiência in vivo, pois mantém-se a viver na sua Cuba e a ser uma voz ativa e critica contra um regime que teima em manter-se vivo, abrasivo e destruidor. Nós, enquanto leitores, aplaudimos. 



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