Poesia
Espelho de água.
É difícil falar de “Poesia”, de Lee Changdong, sem ser desmancha-prazeres, sem revelar mais do enredo do que se deveria. A maneira como o filme está construído obriga a isso, a narrativa é de tal forma inexorável que descrever o princípio é adivinhar o final, inevitável. Reside aqui a sua grande fraqueza ou a sua grande força, ainda não estou certo. (Cannes viu força, deu a Lee o prémio de Melhor Argumento na edição do ano passado.) Tentarei, ainda assim, revelar o menos possível, sendo às vezes críptico de mais. O leitor, avisado, que vá por sua conta e risco.
Aos primeiros planos de “Poesia”, descobre-se um pouco da história – um corpo de uma adolescente desagua perto de umas crianças que brincam – e muito das qualidades de Lee Changdong: numas quantas penadas, sem palavreado, com suaves movimentos de câmara e um corte ou outro, está lançada uma das correntes da narrativa.
De seguida, é apresentada a protagonista, Mija (interpretada por Yun Jeong-hie, que leva o filme às costas, expressão batida, mas poucas vezes tão acertada), a meio de uma consulta em que se percebe que tem uns primeiros indícios de Alzheimer. Mija é uma sexagenária bonita, sempre muito aprumada. Trabalha como mulher-a-dias para um homem entrevado e toma conta do neto adolescente. Segunda corrente narrativa.
Por esta altura, quando se vai mais fundo nas águas da história da adolescente boiante, começa-se a pensar em “Mother – Uma Força Única”, do também coreano Bong Joon-ho. Há pontos de contacto: protagonistas da mesma idade, o amor de mãe como o amor de avó, o amor incondicional. Mas se “Mother” joga mais no terreno do thriller (e fá-lo muito bem), “Poesia” é mais duro, apresenta menos desculpas, questiona as certezas do espectador, não no sentido do choque ou de surpresa, entenda-se, no de fazê-lo questionar as relações familiares, as lealdades e as traições.
Terceira corrente narrativa: a poesia. Mija resolve na terceira idade dedicar-se à sua paixão pelos versos, inscreve-se num workshop e passa o resto do filme com um caderninho a tirar notas. Diz que gosta muito de flores e coisas bonitas, mas a maior parte das vezes fala é de sangue e morte. E só quando se põe face-a-face com a maldade do mundo, com os sonhos desfeitos consegue soltar o seu poema. É ela quem, de todas as personagens, sente mais o suicídio da adolescente encontrada nas águas, que se matou por não aguentar mais ser o objecto sexual de seis rapazes num laboratório escondido. Um gotinha de feminismo ou uma imensidão de identificação, a água como espelho.
As correntes todas – estas e outras que não tive espaço para referir – juntam-se no final e ganham muita força, uma força imparável, dir-se-ia um tsunami, que se começa a vislumbrar a meio do filme. Se é fraqueza de argumento demasiado prefeito, continuo sem saber. De resto, não há surpresas, só muita amargura.
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