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“Que fazer para desatar o nó fatal do infeliz destino das mulheres?”

“Hipólito”, de Eurípedes, que abriu o 38º Festival de Teatro de Almada, criado a partir de um texto com mais de dois mil e quinhentos anos, parece intensificar o desdobramento da abordagem do feminino que é realizado em diferentes espetáculos apresentados no festival.

Já o escrevemos no primeiro texto sobre o Festival de Teatro de Almada: o leitor/espectador pode nesta programação dar-se ao luxo de construir sentidos que podem ser excêntricos em relação à (não) intencionalidade do programador. E se o referimos em relação ao diálogo que se pode estabelecer entre espetáculos que abordam o colonialismo,  o mesmo também é muito patente na articulação que, como um grito que vem da antiguidade clássica, se pode estabelecer entre esta Fedra, de Hipólito, defendida pela actriz Teresa Gafeira,  e os vários discursos sobre o feminino que podemos encontrar em espectáculos como, por exemplo,  Molly Bloom, Maria Callas, Fake,  Aurora Negra, Duas personagens e Rebota, Rebota y en tu cara explota. 

O desejo da mulher constrói o jogo trágico

E que excede a própria tragédia de Eurípedes já que ela é actualizada pela leitura que podemos hoje ter desta Fedra. Como disse Teresa Gafeira a Gonçalo Frota do Público  : “ Fedra não praticou nenhum acto vergonhoso, simplesmente sentiu desejo.” . Mas se isso é o que podemos sentir hoje, e nem sempre, tantos séculos volvidos ainda acontece que o prazer da mulher seja sentido como uma ameaça à integridade do homem, o que sente Fedra é bem diferente. Ela confessa à sua ama: “As mãos estão puras, mas a mente está manchada”.

Neste jogo trágico de remorso, ressentimento e culpa, é impressionante o contraponto de lucidez da ama (Elsa Valentim) que parece ter feito uma viagem no tempo até aos nossos dias quando diz:

  

“- O que sentes não tem nada de extraordinário nem de inexplicável: Estás apaixonada — grande coisa! É por causa deste amor que queres morrer? Que grande negócio, para os que amam e para todos os que hão-de amar, se tivessem obrigatoriamente de morrer! “.

E depois de convocar a responsabilidade da deusa Afrodite, conclui: “Da desgraça em que caíste, como pensas escapar? Vamos, afasta os maus pensamentos, não sejas arrogante, pois não é mais do que arrogância querer ser mais forte do que os deuses. Ousa amar.”.

Não é por acaso que este texto, que é a uma segunda versão que Eurípedes construiu desta tragédia ( a primeira foi muito mal recebida por causa da forma como  Fedra assumia explicitamente o seu desejo), é apontado como um dos primeiros textos onde a sexualidade irrompe de um modo mais claro no comportamento feminino. É ainda a ama que lhe diz: “Não é de belas palavras que precisas, mas sim de um homem.”

Tudo o resto, a misoginia de Hipólito (Cláudio da Silva), a hipocrisia do infiel Teseu (Marques Arede), perde peso para aquilo que é verdadeiramente nuclear neste texto, e que a dramaturgia soube sublinhar, retirando da fala de Fedra, e colocando-a na do coro esse lamento, grito que vem do fundo dos tempos : ”Infelizes! O destino das mulheres! Derrubadas! Que fazer para desatar o nó fatal das palavras que atou Fedra?”

Ao coloca-lo no coro, coloca-o na cidade e ao coloca-lo na cidade, coloca-o na política, e a política traz-nos até nós esta sentença para o vermos com os nossos olhos de hoje.  É também significativa a voz do povo que se ouve de fora da cena quando Fedra se suicida: “ – Não devemos intrometermo-nos na vida dos outros”.

A intersubjectividade, a mentira e a verdade em Fedra

Há uma explosão de sentidos na forma como a morte de Fedra arrasta a maldição de Hipólito. Por muito que no final a deusa Artémis (Joana Francampos),  revele a Teseu que Fedra mentiu ao dizer que Hipólito a possuíra – e nesse jogo de verdade e mentira esta peça dialogue com Fake, de Miguel Fragata e Inês Barahona – também podemos hoje perceber que essa leitura é uma limitação â expansão simbólica do texto aos nossos dias. Porque na verdade Fedra mentiu tanto quando escreveu no bilhete que Hipólito a possuiu, como mentiu a si mesma quando disse a si própria que tinha traído Teseu e arruinado a vida de seus filhos. As duas mentiras estão ligadas pela mesma verdade: Fedra sacrifica a sua vida honrando essa percepção da realidade. Aquilo que acontece é também aquilo que imaginamos, que sonhamos. De certa forma, quão moderno é este texto, que articulando a ficção e a realidade, lança caminhos para a intersubjectividade nas relações humanas?

Olhemos agora o espectáculo agora como se fosse uma ilha, como se lhe cortássemos toda esta riqueza semiótica que atravessa, como um cometa, vinte e cinco séculos de história, de histórias entre Euripedes e os nossos dias.

Quando terminou a representação senti-me esmagado pela experiência estética a que acabara de ter acesso. Desde o primeiro momento, ainda antes de começar o espectáculo, na cena aberta enquanto os espectadores entram, aquele espaço concebido por José Manuel Castanheira começou “a falar”. Duas enormes paredes, colocadas em diagonal, apontam para o centro da ação. As cinco cadeiras colocadas em vários planos, reforçam a ideia de profundidade.

A humildade cénica na máquina teatral de Rogério de Carvalho

Hilário expõe os vários níveis daquilo a que podermos chamar a máquina teatral que Rogério de Carvalho foi construindo, e depurando, ao longo dos anos, dos seus muitos anos de teatro. É impossível não nos lembrarmos, entre muitos outros, de Tio Vânia, no Teatro da Caixa ( que marca também o inicio do seu trabalho com o cenógrafo José Manuel Castanheira), de O Sonho de Strindberg pelo TEUC, O Despertar da Primavera pelo Teatro Universitário de Braga, O Paraíso não está à vista, com o Maizum, Quatro horas em Chatila, com as Boas Raparigas, o trabalho que ultimamente fez com o Griot, ou as várias aproximações que fez aos Negros de Jean Genet, das quais a que realizou com o Teatro do Século ainda hoje me parece a mais intrigante e poderosa. Teremos certamente oportunidade de voltar a ele, a sua encenação de Lorenzaccio fecha o Festival.

Se houvesse uma só palavra para caracterizar esta máquina teatral arriscaria a da humildade cénica com que todos os elementos cénicos se articulam uns com os outros. Com que cumprem a sua função cénica.

Hipólito é um caso paradigmático, e por isso tão feliz: veja-se os actores, o coro ( Anabela Riberiro e Carolina Dominguez), duas mulheres apenas, duas vozes, tem um trabalho de uma sincronia que amplifica o texto, parecem duas siamesas, constroem-se quer no que dizem quer no modo como olham a cena  e constroem uma ressonância vocal que se articula com todo o espaço sonoro criado. A ama, onde Elsa Valentim consegue na simplicidade emprestar uma grande densidade à representação. O corifeu, Pedro Fiuza, com grande contenção, e uma tensão cénica fortíssima na forma como complementa a geometria humana do olhar em cena, um dispositivo que o encenador constrói na perfeição e ao qual subordina toda a representação. 

Este olhar de uns para os outros é fundamental. É como se as coisas que ocorrem naquele palco para o público também estivessem ali a acontecer para os actores assim constituídos espectadores da ação que se desenrola. Lembremos o diálogo quando Fedra se suicida, e, desesperada, a Ama (Elsa Valentim), pede ajuda:

AMA

Ninguém? Não há ninguém que traga um ferro de dois gumes para cortar o nó que lhe aperta a garganta?

CORIFEU

Que faremos? Entraremos na casa para libertar a senhora do laço que a estrangula?

CORO

Não. Não devemos intrometer-nos na vida dos outros.

Um universo de representação próprio

Tudo tem um significado, tudo parece ser uma experiência, mesmo que desafie as convenções teatrais habituais. Veja-se a entrada de Afrodite ( Sofia Correia) logo no início. Entra de costas, vem da esquerda em direcção ao centro desenhado pelas grandes paredes, e é aí, no lugar mais afastado do público que termina o seu monólogo inicial. Ou o mensageiro (Miguel Eloy) que vem trazer a Teseu as notícias sobre Hipólito e que narra  a história com todos os pormenores como se estivesse a contar um episódio de um filme.

É de uma felicidade criativa terrível, esta versão de Hipólito. Do ponto de vista cénico, é raro o objecto teatral que Rogério de Carvalho conseguiu construir com os actores, com o cenógrafo e com a figurinista (Mariana Sá Nogueira), com a sonoplastia (Andreia Mendrico), com a luz (Guilherme Frazão), também desde logo com a equipa de dramaturgia (Teresa Gafeira e Rodrigo Francisco) que com ele trabalharam durante quase dois meses a tradução de Fernando Zorrer. 

E se neste espectáculo Rogério de Carvalho parece ter imposto aos actores uma representação austera nos gestos, nos movimentos e nas vozes, também constituiu contrapontos expressivos, como por exemplo com Fedra (Teresa Gafeira) e Hipólito (Cláudio da Silva), permitindo-lhes uma expressividade mais histriónica, mais redundante. 

A luz, o som e o espaço

Neste dispositivo narrativo há três elementos fundamentais: o espaço cénico, o espaço sonoro e a luz. Sobre o espaço cénico de José Manuel Castanheira já referi os seus elementos: duas grandes paredes  ( com uma abertura em ambos os lados) em diagonal que depois irão ser fechadas por um ciclorama, e cinco cadeiras. Tudo em tons esbatidos, amálgama de muitas cores, que irão ser multiplicados pela luz. Estes elementos não comunicam apenas esteticamente connosco. Ao irem transformar o espaço, vão constituindo uma memória do espectador que cria uma duração na nossa experiência cénica. É como se nos lembrássemos dos muitos lugares que já estiveram naquele palco tocado pela simplicidade.

O espaço sonoro é um lugar chave deste universo próprio de Rogério de carvalho, que tem como uma das características, a depuração do seu trabalo sobre a sonoridade despindo a palavra e o discurso da sua camada ideológica, apelando a uma experiência sensorial, emocional como é bem visível no trabalho deste pequeno coro. O som está sempre lá a criar uma dimensão paralela.  

Já a luz, para além deste efeito terrivelmente belo da multiplicação do espaço cénico, trabalha uma outra dimensão tão cara ao encenador: o trabalho sobre as sombras. As sombras dos actores nas paredes não são meros efeitos estéticos. São uma real multiplicação dos sentidos deste objecto. E repare-se por exemplo, no movimento quase final com que o Corifeu leva o corpo de Fedra, na forma como a luz o acompanha e faz o gesto transcender-se no seu duplo, quase um efeito fantasmático.

Voltamos ao início, e já se percebeu que esta aventura interpretativa a que nos demos partiu de uma rendição quase incondicional a este objecto raro com que o Festival de Teatro de Almada abriu a sua programação: Hipólito permite-nos uma viagem de dois mil e quinhentos anos onde a pergunta essencial é trazida pelo coro, que aqui representa a cidade, a polis, todos nós em todos os tempos: o que temos feito para construir uma felicidade entre homens e mulheres que os liberte a ambos da tragédia que temos dentro de nós?

HIPÓLITO de Eurípides. 

O mal-amado Hipólito, bastardo fruto de uma ligação entre Teseu e uma amazona, acaba por ter por madastra Fedra, que se apaixona pelo enteado, em resultado de um mau-olhado de Afrodite. 

Encenação de Rogério de Carvalho 

Intérpretes: Anabela Ribeiro, Carolina Dominguez (Coro)  Cláudio da Silva (Hipólito),  Elsa Valentim (Ama) Joana Francampos (Artémis), Marques D’Arede ( Teseu) Miguel Eloy (mensageiro)  Pedro Fiuza (Corifeu) Sofia Correia (Afrodite) Teresa Gafeira (Fedra).  

Cenografia José Manuel Castanheira Figurinos Mariana Sá Nogueira 

Teatro Municipal Joaquim Benite Sala Principal 

Dias 2 e 3 (sexta e sábado)  às 20h30 e dia 4 (domingo)  às 16h



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