RAQUEL FREIRE | ENTREVISTA
“A mensagem é que apesar de todos os condicionantes externos, é possível viver, criar e amar, construir a tua vida com dignidade, ter uma família sem fazer parte da maioria”
Uma mulher que cria obras de arte em imagens e palavras: realizadora influente e escritora promissora. Em 2013 apresenta um novo filme: “Vida Queima” e publica o seu primeiro romance “Trans Iberic Love”.
Acredita numa outra terra na mesma terra também mais livre de preconceitos. No exercício da cidadania activa como liberdade de um povo. Assume-se como co-criadora do projecto: Academia Cidadã.
Para ela “fazer o que se gosta em liberdade é o melhor que há”. Eis uma das personagens marcantes deste ano.
Vais publicar em breve o teu primeiro romance “Trans Iberic Love”. O que significa escrever um livro?
Escrever significa criar um mundo novo e nesse sentido é como fazer um filme. É uma grande aventura. Nunca sabes como vai terminar. Quando tenho alguma coisa a dizer é um processo imparável, até ao parto. O que aconteceu com este livro foi uma novidade: eu sonhava, levantava-me, começava a escrever e pela primeira vez não tinha a forma de um argumento de cinema, falava por si. O que eu tinha para dizer e o que aquelas personagens tinham para contar não cabia na forma de um filme.
Fala-nos um pouco da história do teu primeiro romance.
O meu romance é uma grande história de amor entre dois activistas, uma portuguesa e um espanhol que se apaixonam perdidamente um pelo outro e pela ideia de revolução, pela ideia de construir um mundo novo e diferente.
Todos os princípios que eles defendem para a construção duma sociedade mais justa aplicam-nos no dia-a-dia. O romance é um diário dessas duas pessoas que começa na infância e se projecta no futuro, isto é, eu imaginei como seria viver daqui a 20 anos.
Também é uma história sobre o que é o activismo contemporâneo como uma nova forma de cidadania que não depende de estruturas antigas como os partidos políticos, as estruturas sindicais e as estruturas religiosas. Surge como uma nova forma de intervenção social e faz-se através do exercício da cidadania activa. Hoje o próprio sistema, ou seja o capitalismo, deu as ferramentas para isso, tu tens a internet, o low cost, as redes sociais e podes utilizá-las a teu favor no sentido de democratizar e fazer a mudança social.
O processo da escrita do livro foi uma grande alegria: pela primeira vez não tinha de fazer concessões, escrevi sozinha.
O meu romance vai ser editado este ano pela Divina Comédia.
O que te impulsiona a realizar um filme?
A necessidade de comunicar e de partilhar com os outros os meus sonhos e ideias.
O próximo filme que vou realizar parte do livro, que é um trabalho solitário. No entanto, sinto-me outra vez cheia de vontade de trabalhar em equipa, porque é isso que me dá prazer, conseguir criar com outras pessoas. E não falo só da partilha com os actores. A partilha chega também ao público. Que o que eu sonhei passe a ser novas formas de viver, novas formas de amar, novas formas de ser, de agir, novas formas de tudo.
Qual a mensagem do teu último filme “A Vida Queima”?
A mensagem é que apesar de todos os condicionantes externos, é possível viver, criar e amar, construir a tua vida com dignidade, ter uma família sem fazer parte da maioria e estando em pleno desacordo com o que é o pensamento dominante.
“Rasganço” (2001) é a tua primeira longa. Recentemente chegou às 400 mil visualizações no YouTube. O público gosta cada vez mais de cinema português?
Quando dizemos o público, não há um público, há muitos. Orson Welles dizia: “quando encontrarem “o” público apresentem-mo, que eu quero conhecê-lo “. Existe um público que tem cada vez mais consciência que um povo sem cultura e sem educação é um povo sem identidade. Um público que quer cada vez mais ver objectos artísticos.
Filmas frequentemente o universo feminino. Subentende-se uma valorização das mulheres e novas leituras do mundo destas. Concordas?
Sim, a história das mulheres é uma história que está por fazer. Elas não tiveram voz. Quantas são cineastas, quantas são escritoras conhecidas? Quantas tiveram acesso a uma educação que lhes permitiu trabalhar em áreas que eram exclusivamente masculinas?
Portanto eu falo das entranhas, as minhas entranhas são a minha experiência enquanto pessoa que se identifica como mulher no momento histórico em que nós vivemos hoje e as mulheres continuam a ser discriminadas.
No entanto, há diferentes feminismos. Para mim o princípio fundamental do feminismo é a teoria que diz que todas as mulheres são pessoas.
O Porto (da tua infância), Coimbra (dos tempos de estudante), Lisboa (a vida adulta) os teus cenários são-te próximos afectivamente?
Os meus cenários têm sentimentos, são eles que mandam e que pedem para eu criar histórias para eles. As casas falam, as paredes falam, a luz e os rios. Não são cenários, são espaços afectivos. São como as pessoas.
Valorizas mais a reacção positiva do público ou da crítica?
Do público. Quando comecei a fazer filmes tinha consciência que o que eu tinha para dizer dificilmente iria agradar à maioria das pessoas. Os críticos tendo conhecimentos e uma cultura muito diferente da mainstream, têm um papel importante quando o fazem de uma forma séria, mas acabam, às vezes, por ser muito mainstream.
O Vasco Pimentel no meu primeiro dia de filmagens como realizadora, ofereceu-me um Óscar em plástico que tinha escrito: o mais genial (porque não há o feminino de genial). Disse-me: Este prémio é para saberes que este é o melhor prémio que vais ter na vida, o cinema que tu fazes não é para teres prémios e se tiveres será que de alguém que eventualmente tem uma visão diferente da mainstream e que te irá valorizar, mas o teu objectivo não é esse. Tu não fazes cinema para agradar e nunca caias nessa tentação.
E não caio. Para mim, fazer o que se gosta em liberdade é o melhor que há.
Que tipo de cineasta és?
A minha definição de felicidade é acordar de manhã e ir filmar. Sou uma cineasta alegre. Olho-me como uma realizadora de partilha, faço co-criação com os actores, músicos e toda a equipa. Mas sou também uma perfeccionista insuportável.
Todavia quando um filme está feito, não olho para trás. Não vejo mais os meus filmes. Depois de estar terminado pertence às pessoas já não é meu, é um objecto público. Quando estou a trabalhar num filme, já estou a pensar nos seguintes.
Quais são as realizadoras nacionais e estrangeiras que mais admiras?
Eu tenho de falar de uma pessoa que é a Teresa Villaverde que quando eu tinha 19 anos me fez perceber que era possível ser realizadora no meu país. Gosto muito dos filmes da Teresa. É muito importante que tenham existido mulheres a fazer excelente cinema em Portugal. Admiro o trabalho da Cláudia Tomaz, da Margarida Cardoso, da Claúdia Varejão, da Susana Sousa Dias e da Rita Azevedo Gomes. Gosto do primeiro filme da Margarida Gil.
Lá fora, Monika Treut e Claire Denis. Também Jane Campion, mais mainstream.Eu mudei de vida depois de ter visto um filme dela. Gosto da Sofia Coppola que também é mainstream. E fico extasiada com “O Triunfo da Vontade” da Leni Riefenstahl. Aprecio documentários sobre assuntos controversos, como o “Jesus Camp” de Heidi Ewing e Rachel Grady, onde desmascaram todo o sistema da Igreja Evangelista nos EUA. Gosto bastante da abordagem Feminista – Queer da Emilie Jouvet.
Gosto especialmente do trabalho de duas francesas, a Anna Pitoun e a Valérie Mitteaux que fazem documentários sobre temas polémicos, com quem estou neste momento a co-realizar um documentário sobre o sonho da democracia: Dreamocracy.
Escolhe cinco filmes portugueses ou estrangeiros imperdíveis.
Começo pelo “Mudar de Vida” do Paulo Rocha que é um dos melhores filmes alguma vez feitos. Depois a “Terra em Transe” do Glauber Rocha. Da Teresa Villaverde escolho “Os Mutantes”. Para mim é muito difícil escolher um do David Cronenberg, um realizador que questiona muito a identidade, mas se tenho que escolher, seria “Irmãos Inseparáveis”. Por fim escolho o “Senso” do Luchino Visconti. E todos os filmes de Cassavetes.
Como vês o futuro da Cultura e em especial do cinema em Portugal?
Com esperança. Cada vez mais as pessoas têm consciência que a nossa identidade é a nossa cultura. E que as políticas de austeridade estão a destruir vários dos factores identitários e é a cultura em todas as suas formas de criação (popular, menos popular, intelectual) que nos vai salvar. Por cultura, entendo essencialmente a nossa criação contemporânea.
Tens manifestado publicamente o teu apoio a causas como a despenalização do aborto, o casamento entre homossexuais. Acreditas num mundo livre de preconceitos?
Acredito que só vale a pena estarmos vivos em liberdade. E quando digo em liberdade significa sem preconceitos que formatam a nossa maneira de pensar. Todos os preconceitos são prisões e todos nós os temos, sem termos consciência deles. É o trabalho duma vida ganhar consciência de quais são os nossos preconceitos para os desconstruir. A história em si da humanidade é de luta das pessoas contra as várias formas de preconceitos que se traduzem em opressão, seja a luta contra a escravatura, o racismo, homofobia, sexismo… É impensável hoje que as mulheres não tenham direito a votar, mas as mulheres continuam a ganhar menos que os homens pelo mesmo trabalho. É fácil perceber o preconceito que sustenta esta desigualdade.
No teu documentário SOS abordas um racismo mais subtil. Temos de evoluir?
Não diria subtil, diria insidioso. Quando pensamos na forma como vivemos uns com os outros percebemos que há racismo. No dia-a-dia muitas vezes não o vemos ou recusamo-nos a vê-lo. Temos um racismo menos violento do que noutros países da Europa mas que é igualmente eficaz, isto é, continua a excluir uma grande parte das pessoas. No meu documentário quis que o meu interlocutor central fosse alguém habitualmente vítima de racismo e que vivesse em Portugal, por isso escolhi o escritor Ondjaki. Mas no filme abordo a outra perspectiva: também ele reconhece que tem preconceitos em relação aos franceses, por exemplo, porque os que ele conheceu em Angola tinham uma postura “colonialista”. No filme, afirma que é fundamental para ele conhecer mais pessoas francesas para destruir essa imagem negativa. Fazer este trabalho de desconstrução é essencial, para nos construirmos como pessoas melhores. Para percebermos que depende de nós, temos de ser nós a agir no quotidiano e ao mesmo tempo lutar para que a desconstrução do racismo faça parte da educação para a cidadania. Isto não interessa ao poder político actual, que aposta na estratégia de dividir para reinar e por as pessoas umas contra as outras para se manter.
Este documentário foi um desafio: fazer um documentário de guerrilha, em 48 horas, sem dinheiro e sem meios para a produção. Tem uma forma bruta, uma estética experimental diferente de tudo o que tinha realizado antes. Deu-me imenso gozo e espero que agora que saiu em DVD vá explodir com muitos preconceitos.
Pertences ao “Movimento 12 de Março”. Somos a eterna geração à rasca?
Não, somos a geração que está a criar as soluções para este país.
Ao ” Movimento 12 de Março” foram-se juntando mais pessoas: jornalistas, artistas, filósofos, e outras cidadãs e cidadãos portugueses e estrangeiros de várias partes do mundo e começámos a pensar num projecto importante: uma “Academia Cidadã”.
Há três formas de mudares um sistema político: fazes um golpe militar, (o que não faz sentido hoje), ou fazes um partido político (ganhas as eleições e vais para o governo), ou dás às pessoas o acesso à educação, dando-lhes ferramentas para lutar e para serem as próprias pessoas a fazerem a mudança. Temos vários exemplos históricos, como o da Rosa Parks. Poucos sabem mas ela estudou dois anos numa escola de activismo, o Highlander Center, a primeira que houve nos Estados Unidos. Ela, Martin Luther King e todas as outras pessoas que conquistaram os Civil Rights, tiveram preparação. Mais recentemente, os activistas da Primavera Árabe, da Tunísia e do Egipto estiveram dois anos a estudar na Sérvia.
Se queremos mudança social temos de dar poder às pessoas, temos que empoderá-las enquanto agentes de transformação. Elas são o Estado, o país, tudo. As pessoas é que têm de decidir como querem viver, nas suas relações de todos os dias, e o que querem para a sua freguesia, para a sua cidade, para o seu país.
A Academia Cidadã assenta na promoção da dignidade da pessoa humana na sua diversidade, dos valores humanistas, da multiculturalidade e interculturalidade, do aprofundamento da democracia e da construção de uma sociedade livre, justa, sustentável, solidária e fraterna. É urgente encontrar novas soluções para os problemas. Eis as linhas genéricas orientadoras do projecto Academia Cidadã que terá vários pólos. Os primeiros a avançarem são a “Escola de Cidadania” e um “Laboratório da Democracia”.
Este vai ser um centro de pesquisa – acção para o aprofundamento da democracia. Vamos fazer programas com medidas políticas concretas, como por exemplo a fiscalização do Estado através da criação de Conselhos Cidadãos, como já existem em alguns estados brasileiros em que estes fiscalizam o poder político. Existe, por exemplo um Conselho para a Saúde que controla o governante eleito e se este não cumpre o programa é fiscalizado e vai-se embora. A fiscalização cidadã do poder é essencial. Inicialmente o que nós percebemos foi que sair à rua e manifestarmo-nos era muito importante mas não é suficiente. Para nós o “12 de Março” foi mesmo o grito do Cisne da Democracia em Portugal. Estamos numa fase de mudança de paradigma, de repensar a democracia e pensar a cidadania activa…
O que é fazer outra terra na mesma terra – numa alusão a Sérgio Godinho. O que faz falta neste momento em Portugal?
O que faz falta é as pessoas perderem o medo e ganharem responsabilidade e perceberem que o país é deles. Não há governo nenhum por mais tirano que seja que consiga derrotar uma comunidade que seja solidária, que se respeite e que coopere. Por isso é tão importante criar uma Academia Cidadã que crie estes laços de respeito, de cooperação, de respeito pela Natureza, pelo Ambiente (dos recursos que são outras formas de vida). Precisamos de ganhar coragem para começarmos a avançar sozinhos. Perceber que não temos de estar à espera dos nossos governantes para sabermos como é que queremos decidir as nossas vidas.
Orson Welles disse: “ O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho.” É preciso sonhar para realizar?
Muito, é preciso sonhar para viver, o sonho comanda a mesmo a vida. Quando sonhamos temos menos prisões, não nos autocensuramos. É verdadeiramente importante sonhar. E ter acesso directo às nossas emoções, ao que queremos, aos nossos sentimentos mais profundos como algo de fundamental.
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