“Resgate” | David Malouf

“Resgate” | David Malouf

A reinvenção de dois homens

Nascido em 1934, David Malouf é, de entre os escritores australianos, o mais premiado e aclamado, sendo o Nobel um destino mais do que provável nos anos imediatos. Quatro anos após a sua edição original – e dez depois do seu último romance –, a Bertrand Editora lança entre nós “Resgate”, um livro que, de tanto poder e fascínio que emana, poderia ser confundido com um momento de ilusão de um inspirado David Copperfield.

Em “Resgate”, Malouf viaja no tempo para reinventar a história de dois homens cuja vida se deixou congelar por um instante trágico. De um lado temos Aquiles, temível e respeitado guerreiro e chefe dos gregos, que durante o cerco a Tróia vê morrer o seu amado Pátroclo; do outro lado da barricada está Príamo, rei dos troianos, cujo filho Heitor foi morto por Aquiles num acto de vingança.

Tudo aqui está envolto numa prosa mágica e intemporal, onde não há uma linha que consiga quebrar o encanto. O livro está como que dividido em três momentos (que abrangem as cinco partes do livro); no primeiro seguimos a vida de Aquiles, um guerreiro que, quando não está a combater, está a lavrar a terra, sabendo que um dia a ela irá regressar. Através da relação com a mãe que, de tão intensa, quase nos faz sonhar com incesto, experienciamos o fim da adolescência e a entrada na idade adulta. Um ano após o assassínio de Pátroclo às mãos de Heitor, Aquiles não deixou ainda partir o espírito do amante – que lhe pede a liberdade -, nem voltou a exercer o seu papel de chefe. Vive num ciclo vicioso e rotineiro, arrastando diariamente o corpo de Heitor pelas imediações da cidade, atrelado a uma carroça, sem contudo sentir algo que o mova – «…o seu espírito de corredor abandonou-o. É do peso telúrico, dentro de si, de todos os seus órgãos, a começar pelo coração, que ele tem de se livrar para voltar a ser ele mesmo.»

No segundo momento deixamos o cerco e saltamos as muralhas para a vida no interior de Tróia, onde Príamo, pai de Heitor, vive angustiado com o espectáculo diário encenado por Aquiles. Até ao dia em que decide resgatar o corpo do filho, numa missão em que desce do pedestal para se apresentar perante Aquiles quase como um escravo, aquilo que em tempos foi e poderia ter sido durante toda a sua existência. Nessa viagem será acompanhado por Sómax, um simples carroceiro, pouco habituado a lidar com o luxuoso e complicado mundo de reis e príncipes. Príamo começa então a descobrir o mundo, bem como a própria vida que julgava extinta – «O que quer que tenha sido, acabou ou, misteriosamente, acabou de começar.»

O terceiro momento é do encontro entre Aquiles e Príamo, e sobre como, a partir desse instante – bem como da partilha quase silenciosa sobre a dor de ambos -, acabam por se reinventar como homens e guerreiros.

Num livro onde os deuses espreitam a cada página, David Malouf oferece-nos uma história comovente sobre a perda e o recomeço, em que dois heróis trágicos esquecem, por um momento, que estão separados por um fosso profundo. Mágico.



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