Rockumentário
A RDB à conversa com a realizadora Sandra Castiço sobre o cinema, Coimbra e os Bunnyranch.
Na década de 90, um grupo de adolescentes conimbricenses inconformados com a cultura do fado, estudantes e guitarradas que os rodeavam em Coimbra, decidem combater o tédio à sua maneira: formando uma banda rock.
Nasciam assim os Tédio Boys e Coimbra nunca mais foi a mesma. Aliás, Portugal nunca mais foi o mesmo. Concertos transformados em motins, actuações terminadas na cadeia, espectáculos que chegavam ao fim com a banda em nu integral… Concertos nos locais mais improváveis, digressões pelos Estados Unidos e até uma actuação na festa privada de aniversário de Joey Ramone, convidados pelo próprio. Em cinco anos de carreira, os Tédio Boys fizeram tudo e deixaram a sua marca profundamente vincada no imaginário português.
Dos estilhaços dos Tédio Boys surgiriam alguns dos mais interessantes projectos rock da actualidade – os Wraygunn, os Bunnyranch, os D3ö, o The Legendary Tigerman, os Parkinson e os Blood Safari – e agora, quase uma década após a separação da banda, até já foi tomado como fenómeno sociológico.
Primeiro, foi Rita Alcaire a analisar essa cena rock de Coimbra, no seu ensaio literário “Filhos Do Tédio”. E agora foi Sandra Castiço, realizadora que se estreia nas lides cinematográficas, com o documentário musical “Rockumentário”, que acompanha os Bunnyranch na estrada.
Depois de o ter visto no Indie, a Rua de Baixo procurou a debutante realizadora Sandra Castiço, com a qual conversou sobre cinema, o seu (e os dos outros) “Rockumentário”, Coimbra e os Bunnyranch.
Rua de Baixo – “Rockumentário” marca a estreia da Sandra Castiço no cinema. Porquê esta escolha, pelo documentário em geral e pelo rockumentário em particular?
Ideias para filmes e vontade não me faltavam. Estava farta de não fazer nada e então decidi tentar concretizar a mais viável. A do rockumentário era uma delas. Adoro rockumentários e queria, como o Scorsese, ter um meu. Ele tem dois até. Enviei um mail para a Zed Filmes, o António Ferreira ficou entusiasmado com a ideia e aceitou produzi-lo
Nos últimos tempos assistiu-se a uma autêntica revitalização dos documentários, com grandes êxitos de bilheteira, como “Fahrenheit 9/11” ou “A Marcha Dos Pinguins”, por exemplo. Como é que analisa esse cenário?
É indiscutível que o filme documentário está na moda um bocado por todo o lado. Não conheço a razão. Mas deve estar relacionado com o facto de se fazerem muitos e por ser fácil e barato, desde a revoluçao do digital. Para além disso, as histórias da vida real são sempre interessantes. Veja-se as audiências dos telejornais e dos reality shows.
Em Portugal, o cinema não costuma dar muita importância ao mundo da música – não existem muitos documentários ou biopics sobre músicos nacionais, por exemplo. Por que é que isso acontece?
Mais uma vez não sei a resposta. Posso inventar, não custa nada e eu gosto sempre de especular. Parece-me que em Portugal o cinema está atrasado a todos os níveis, seja no documentário ou seja na ficção. Não existe muita variedade, nem cinema de género, nem sequer uma linguagem cinematográfica portuguesa. O cinema português não existe.
O verdadeiro interesse pelo cinema começa agora, temos finalmente uma acessível e boa revista de cinema, a Premiere, a espicaçar o interesse, fazem-se workshops relacionados com cinema todos os meses, desde há três anos que temos um novo curso de cinema na universidade pública da Covilhã, há cada vez mais festivais que têm imensa adesão e finalmente começa-se a experimentar coisas que se fazem desde sempre nas várias cinematografias do mundo. Os filmes de terror, o “Coisa Ruim” e o “I’ll See You In My Dreams” e ainda documentários sobre tudo, inclusive sobre música, o “Movimentos Perpétuos”, sobre o Carlos Paredes, do Edgar Pêra, teve um sucesso relativo e até ganhou os principais prémios do Indie.
Os rockumentários tiveram uma grande aderência no início dos anos 70, onde surgiram algumas das obras mais marcantes deste género, como Gimme Shelter [de Albert e David Raysle, sobre os Rolling Stones] ou Don’t Look Back [de D.A. Pennebaker, sobre Bob Dylan]. Teve algum destes (ou outros) títulos em consideração na realização de “Rockumentário”?
Não vi o “Gimme Shelter”, um clássico do género. Vi o “Don’t Look Back”, mas prefiro o mais recente “No Direction Home”, também sobre o Bob Dylan. Adoro rockumentários e documentários musicais em geral, mesmo os que são menos bons, sobre as minhas bandas favoritas. Os meus favoritos, “The Road God Knows Where”, “The Last Waltz”, “The Soul Of A Man” e o “Simpathy For The Devil”, todos geniais, são muito diferentes do meu. Curiosamente, aquele que uso como exemplo para defender o meu a nível estrutural é o “No Direction Home” e vi-o quando já tinha feita toda a montagem do “Rockumentário”.
E o que leva uma natural de Braga a interessar-se pela cena musical de Coimbra?
O tema surgiu primeiro. Queria fazer um filme sobre o rock. Escolhi a banda, os Bunnyranch, que eram o que eu procurava e só depois optei por contextualizar os Bunny na sua cidade. Foi assim que acabei por abordar a cena rock de Coimbra.
A cena rock conimbricense tem dado pano para mangas e não só no mundo da música. Lembro-me do ensaio literário de Rita Alcaire, “Filhos Do Tédio”, e agora, obviamente, deste filme. Afinal de contas, o que se passa mesmo em Coimbra?
A Rita Alcaire descreve muito melhor do que eu poderia fazer esse fenómeno do rock em Coimbra sob um ponto de vista sociológico, a partir de uma banda, os Tédio Boys. Eu peguei na minha banda favorita de Coimbra, os Bunnyranch, e tentei mostrá-los à minha maneira.
Em relação a Coimbra, penso que sim, que existe uma tendência para a música rock. É uma cidade pequena, fechada sobre si, em que os vários músicos das diferentes bandas se conhecem e já tocaram quase todos uns com os outros. Dos Tédio Boys, a banda de rock que abalou a cidade nos anos 90, surgiram as bandas que fazem o som de coimbra hoje, os Parkinsons, os Wraygunn, os Bunnyranch e os D3ö. Coimbra é uma cidade de tradições e o rock é tradição desde há vinte anos.
E porquê a escolha dos Bunnyranch em particular para ilustrar essa cena?
Bastou vê-los em concerto.
Para a realização de “Rockumentário” presumo que privaste com os Bunnyranch durante muito tempo. Houve algum episódio curioso que queiras recordar?
Não tenho nada de muito concreto para contar. As histórias e as palhaçadas em geral eram surreais Uma vez estava meia a dormir de cansaço, encostada a um canto, com a câmara desligada (infelizmente) e ouvia os quatro numa séria discussão sobre botas. Pode parecer normal, mas para mim, naquele momento de sonolência, foi das conversas mais estranhas que já ouvi Lembro-me que havia um que queria umas botas totalmente brancas, mas esta parte pode ter sido sonhada.
Para finalizar: onde vamos poder ver o nome da Sandra Castiço num futuro próximo?
Gosto destas perguntas em que posso discretamente falar mal de qualquer coisa.
Ajudei na montagem do documentário dos Humanos, que ainda está na fase de produção. No futuro, não sei onde vão ver o meu nome. Talvez associado a pequenos projectos, que possam ser produzidos por pequenas produtoras, como a Zed Filmes, e por pessoas com vontade de arriscar, como o António Ferreira. Sinto que ainda não tenho maturidade para me aventurar nesse mundo de gente grande, que faz filmes sérios sobre coisas sérias, subsidiados pelo ICAM. Pergunto-me se alguma vez farei um filme com um subsídio, tendo em conta que tenho gostos e interesses muito ligados à cultura popular, como o rock, e que não me identifico com o considerado cinema de qualidade português.
Queria fazer um filme sobre a Santa de Arouca e fazer televisão. Tenho tantas ideias na cabeça que me vão deixar maluca. Pronto, admito que esta ultima frase é do Bob Dylan, mas é mais ou menos isso.
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