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Rosa Montero | Entrevista

"Os livros são como sonhos que se vivem e sentem de olhos abertos"

Escrito antes da pandemia, A Boa Sorte (Porto Editora, 2021), de Rosa Montero, autora de romances como A Louca da Casa ou do mais recente A Carne, e vencedora do Prémio Nacional das Letras Espanholas, é um excelente exercício narrativo entre o bem e o mal, entre um passado obscuro e uma vida que se quer mais brilhante, mesmo que para isso se tenha de (tentar) esquecer o que e quem já fomos, em permanente fuga da pessoa que nos tornámos.

Essa é a principal luta de Pablo, o protagonista deste romance embebido em generosas doses de mistério e existencialismo, que abandona uma vida de sucesso enquanto um dos arquitetos mais reconhecidos no mundo em troca do anonimato que supostamente lhe confere Pozonegro, localidade esquecida e perdida no mapa, sublinhada por um calor e invejas que derretem qualquer tentativa de compaixão pelo próximo. A exceção é Raluca, a otimista romena que continua a acreditar que se pode apaixonar, ser mãe, e viver o amor da sua vida.

É na dicotomia e relação crescente entre estes dois personagens que evolui a narrativa de A Boa Sorte, um livro que, como confessa a autora em entrevista Rua de Baixo, é o «mais brilhante e luminoso» que escreveu até hoje, também o mote para uma conversa sobre a vida, os seus desafios e perigos, e como o amor pode ajudar a lutar por um futuro melhor.

Nas notas finais de A Boa Sorte, refere que este romance foi especialmente difícil de escrever. Enquanto escritora, quais são os principais obstáculos que impedem ou travam a sua criatividade?
«Acredito que o principal obstáculo à criatividade é o que sentimos interiormente, e, no meu caso, que sou perfecionista e insegura, isso pode ser uma espécie de tortura. A esse respeito, Julio Ramón Ribeyro, escritor peruano, diz que um romance maduro exige a “morte” do autor. Ou seja, só quando o autor se desliga do seu “eu” consciente, começa a percorrer a história que quer contar. Os livros são como sonhos que se vivem e sentem de olhos abertos, e nascem no mesmo lugar do subconsciente onde nascem os sonhos. Neste livro em particular, senti uma espécie de insegurança a meio da sua execução. É um romance pouco convencional, o que o faz com que se escreva sem rede. Além disso, tem uma estrutura muito complexa para manter a intriga fechada, e o desafio foi edificar essa estrutura de forma natural para que a narrativa voe livre e facilmente.»

Viver em pandemia representa também um bloqueio a essa capacidade criativa?
«Sem dúvida. A pandemia foi e ainda é um trauma global. Quando começou, no primeiro confinamento, era impossível conseguir concentrar-me, algo que aconteceu com muitos de nós, inclusivamente amigos escritores, e não escritores, confessaram-me a mesma sensação. Mas, paradoxalmente, foi o próprio trabalho que me ajudou a sair dessa teia. Terminei de escrever este livro no início de janeiro de 2020, mas faltava a revisão final, e foi essa revisão que me ajudou a sair da “paralisia” causada pela pandemia.»

Como surgir a ideia para escrever este livro?
«Sempre julguei que nunca somos nós que escolhemos as histórias que contamos, mas sim as histórias que nos escolhem, que surgem de repente na nossa cabeça e deixam-nos de tal forma entusiasmados que nos obrigam a partilhá-las. E assim que tudo começa. No caso particular de A Boa Sorte, tudo partiu inicialmente de uma viagem de comboio, exatamente da mesma forma como aconteceu com Pablo, o protagonista. Viajava de Madrid para Málaga, quando parámos entre duas estações. Levantei a cabeça e vi uma paisagem urbana industrial horrível, e, em especial, o apartamento mais feio do universo, com uma placa “vende-se”. A primeira coisa que senti foi tristeza, pois, pensei, que ninguém iria comprar aquele apartamento perdido no meio do nada. Mas, outra ideia surgiu na minha cabeça. E se alguém saísse na próxima paragem, retrocedesse e comprasse o apartamento e se trancasse nele, para desaparecer de tudo e todos? Naquela altura, nem imaginava que isso poderia dar um romance, nem muito menos como seria o protagonista porque o faria, mas a ideia geral emocionou-me. Tanto que quando cheguei ao destino da minha viagem, mais propriamente ao Clube de Leitura de Málaga, percebi que já tinha uma ideia para um próximo livro. Estávamos precisamente no dia 29 de abril de 2017.»

Tal como em Os Tempos do Ódio, o seu romance anterior, A Boa Sorte é um livro sobre esperança e tentativa de recomeço. Acredita que esses sentimentos podem servir de catarse ou ser a “salvação” de um mundo à mercê de vários ódios?
«Não encaro a escrita como uma lição ou forma de ensinar, mas uma forma de aprendizagem, algo que ilumina as minhas obsessões e trevas. É talvez por isso que escrevo sobre a capacidade de sobrevivência e regeneração do ser humano, porque acredito piamente na nossa luz e brilho interior, porque sei que os humanos são criaturas com uma enorme tenacidade e capacidade de adaptação às circunstâncias.»

 

O amor move o mundo


O protagonista deste romance, Pablo, é um homem marcado pelo medo das próprias emoções e do passado, optando por “confinar-se” numa localidade cinzenta, sem vida. No entanto, acaba por reerguer-se graças ao amor. Acredita que o amor pode ser o antídoto contra estes tempos de múltiplas incertezas?
«O amor move o mundo. E não falo apenas de amor apaixonado, mas do amor pelos outros. Somos animais sociais e precisamos de viver com e para os outros, em sociedade e partilha constante. Pelo contrário, uma existência de total solidão não pode ser chamada vida.»

Ainda sobre o protagonista, constamos que Pablo tenta esquecer quem é, mudar de vida. Mas, será que podemos fugir do passado?
«Todos nós, humanos, sentimos, pelo menos ocasionalmente, o desejo de fugir de nós próprios, da nossa vida, e não porque não gostamos dessa vida, porque toda a existência é uma espécie de “confinamento”. Nascemos com todas as possibilidades, mas a forma como vivemos pode fazer com que fiquemos reféns do que aspiramos, que pode ser algo extraordinário, mas também menor do que o que sonhamos, dos nossos desejos. Pablo quer mudar de vida, pois acredita que a que tinha até aí foi destruída. Foi atingido por uma catástrofe absoluta e inesperada que destruiu a sua existência, e quando sai do comboio, sente-se moribundo. No fundo, não se trata de um ato consciente e voluntário, mas sim de algo instintivo.»

A responsável pela mudança de Pablo é Raluca, personagem que cresce ao longo do livro e é como uma luz que ilumina o referido cinzentismo não só de Pablo como de Pozonegro. Mas, também ela tem um passado escuro, sofrido…
«Sim, e de que maneira. A vida pode estar repleta de sofrimento, e, sinceramente, acho impossível viver sem sentir a dor em alguma altura da existência. Raluca, em particular, teve uma vida muito difícil, mas é um personagem “leve”. Tem, genuinamente, capacidade para partilhar uma alegria brutal, e esse sentimento é uma virtude visceral que faz com que todas as suas células fervilhem pelo simples fato de estarem vivas. É o personagem mais luminoso que já criei, e, de facto, salva o protagonista, e salvou-me enquanto escrevia o romance (risos).»

No fundo, a (boa) sorte de Pablo é ter alguém como Raluca, que acredita que ser sempre possível ter esperança e olhar o mundo de forma positiva. Podemos assumir Raluca como uma resistente ou alguém ingenuamente otimista?
«A força e a originalidade de Raluca resulta da união de opostos: por um lado, é incrivelmente inocente; por outro, é tremendamente sábia, na medida que tem uma força emocional vital. Mais, Raluca ensina-nos que a boa sorte consiste em procurá-la, em poder olhar o mundo de uma maneira diferente. E, primeiro, em saber e “escrever” o mundo de uma maneira diferente. Pelos humanos serem também narração, palavras em busca de sentido. A esse propósito, o filósofo grego Epicteto afirmava: “o que afeta o ser humano não é o que lhe acontece, mas o que se conta sobre o que lhe acontece”. Ou seja, muda a narrativa e mudará a sua vida. É isso que Raluca faz.»

Noutra perspetiva, este livro tem muito presente a questão da ascensão da extrema-direita. Não apenas como escritora, mas também enquanto jornalista, como encara esta nova realidade política que se alastra no mundo?
«Não é apenas a extrema-direita, mas sim todo o extremismo, seja direita, esquerda, secular ou religioso como o ISIS. A democracia, como sistema, vive um momento de descrédito total e, muito perigoso, existe no mundo uma espécie de anseio por totalitarismos e dogmatismos de toda a espécie. Temos que reencontrar a democracia e torná-la mais eficaz, mais justa e limpa para evitar essa tendência perigosa.»

O neonazismo, por exemplo, é também uma pandemia? Qual a “vacina” para nos protegermos dos seus efeitos nefastos?
«Tudo isto teve origem na crise de 2008, que se “resolveu” de forma errada, pois deixou um quarto da população mundial empobrecida. E todas essas pessoas empobrecidas percebem que uma das causas dessa crise são aqueles que enriquecem de dia para dia e rejeitam assumir responsabilidades. Portanto, não se sentem representados pelo sistema democrático, repleto de falsos puros, demagogos e dogmáticos. A única forma de lutar contra isso, é aspirar por uma melhor democracia, que, realmente, funcione e onde as pessoas se sintam ouvidas e representadas.»

De volta a A Boa Sorte, e, apesar da referência a alguns temas sombrios, seja o ódio racial ou os maus tratos infantis, este é um dos seus livros mais luminosos, que sublinham esperança, pela intervenção do amor puro por alguém. Acredita ser na redenção que nasce a paixão?
«Sim, diria que este livro é o mais brilhante, luminoso que já escrevi. Mas, primeiro, creio na redenção que vem do nosso amor pela vida, do nosso amor pelos outros, não necessariamente da paixão, embora uma paixão que seja boa (porque algumas são tóxicas) também ajude.»


Se A Boa Sorte fosse uma batalha entre o bem e o mal, entre a esperança e o ódio, quem decreta como vencedor?
«Na verdade, este é um livro sobre o Bem e o Mal, com letras maiúsculas, principalmente aquele Mal atroz e sem sentido que nos enlouquece. Mas, decretaria o Bem como vencedor, sem dúvida, mais poderoso e inato ao ser humano. É também por isso que o Mal nos choca e horroriza tanto, ocupando a primeira página dos jornais, porque se fôssemos inerentemente maus, não lhe prestaríamos atenção. Que é o que agora fazemos agora com o Bem: parece-nos o normal e dificilmente o consideramos. Mas, tudo isso, é claro, não impede o Mal de nos ferir terrivelmente.»

 

 

Fotografia de Dani Pozo.



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