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As palavras são como as cerejas

E Rui Catalão puxa-as, uma a uma, para dentro de si.

Diz-se bailarino mas não o vimos dançar nem uma só vez. Actor também diz não ser, já que o que nos dá é a experiência da sua vida e os sítios por onde passou. Para saber da vida de Rui Catalão vai ter de ser “Dentro das Palavras”, de 15 a 24 de Julho, no Negócio da ZDB.

Um escorpião pede ajuda a um leão para passar para a outra margem do rio. «Não me vais picar?», pergunta o leão. «Se te picar, tu vais-te afundar e eu não vou conseguir chegar onde quero», reponde certeiro o escorpião. O leão leva o pequeno animal no seu dorso e chegam à outra margem. Antes de pisar terra firme, o escorpião pica quem lhe dá boleia. O leão morre. Mas antes de morrer pergunta: «Porque fizeste isso?» O escorpião afirma: «That’s my character». É este o tema da peça de Rui Catalão. Character, personalidade e personagem.

Na língua portuguesa não existe uma palavra como character. Personalidade e personagem são dois conceitos distintos e que não se misturam. Já em inglês, é a mesma palavra que as define. Não existe personalidade sem a criação de uma personagem, nem o contrário. E é justamente quando ainda não se consegue distinguir onde começa a personagem e acaba a personalidade que Rui Catalão nos conta a história do escorpião e do leão.

“Eu utilizo materiais cénicos, não um cenário”. A sala é negra e está quase vazia. As paredes estão todas isoladas com uma flanela preta e das duas janelas que existem, não entra luz, só calor. No chão, uma grande tira de papel de cenário que esconde, por baixo, folhas de jornal. Ao centro está uma coluna forrada na mesma flanela preta e parece ser igual às outras que sustentam a casa. Rui Catalão agarra-se, em jeito de abraço, para dar começo ao primeiro episódio de palavras.

Os episódios da peça são quatro e servem de espelho à vida do actor. A vida é feita de episódios marcantes e é assim que os arrumamos nas prateleiras da memória. “Dentro das Palavras” é um documentário onde as fronteiras entre realidade e ficção se confundem e “É na montagem dos episódios que surge a ficção”, acrescenta o actor.

Isabel de Pina, uma mulher que Rui conheceu na faculdade, tem o mérito de dar nome ao primeiro episódio. A história do seu encontro parece feliz, repleta de episódios caricatos e bem sucedidos. O episódio é sobre raparigas que são tímidas, mas íntimas, ao mesmo tempo, daquelas que “são tipo Virgem Maria e depois vai-se a ver e são só Maria”. Ao contrário do que possa parecer, o episódio não é sobre Isabel nem sobre outras raparigas. É sobre ele e não nos podemos esquecer disso.

A coluna a que Rui se abraça, desmorona-se. Não era tão maciça como as outras que suportam a casa, era feita de livros. Num episódio sobre mulheres, Rui agarra-se à coluna de livros, meia desfeita no chão e pega-a como se carregasse um corpo ao colo. A flanela preta que a envolve está presa com alfinetes e Rui desaperta-os como se a estivesse a despir. O corpo já nu é composto, entre outros, por Margueritte Youcenar, Eça de Queiroz e Oscar Wilde.

Doenças e maleitas também compartimentam as nossas vidas. Rui Catalão fala de uma que era comum entre intelectuais no século XVIII. É uma doença degenerativa que afecta habilidades mentais e aspectos da personalidade, causando movimentos involuntários dos braços, pernas e rosto. Dança de S. Vito é como se chama a doença e o segundo episódio, mas de doenças pouco se fala. Há encontros com professores do secundário; primas com cabelos encaracolados e dicionários científicos. Ao mesmo tempo, o corpo desliga-se da linguagem e começa a agonizar com espasmos violentos. “O corpo é uma cápsula em que a vida se encontra enclausurada” e a Dança de S. Vito liberta-a.

Entre o fim do segundo episódio e início do terceiro havia espaço para dúvidas. No começo do espectáculo, foi-nos anunciado que quem assiste é livre para questionar e criticar, nesta altura. “Sintam-se à vontade para criticar, para mudar a peça, para ir embora”, diz Rui, de cada vez que carrega um livro até ao fundo da sala. No início parecia mesmo que se podiam colocar dúvidas. (E não podem?) A distinção entre a personalidade e a personagem é cada vez mais difusa.

O papel de cenário continua estendido no chão como uma passerelle, com as folhas de jornal por baixo dele. Rui Catalão fala menos no terceiro episódio, o desligamento da linguagem falada e a utilização do corpo como meio de expressão cresce a olhos vistos. E conseguimos mesmo ver-lhe o corpo a nu: “Rapei os pelos do peito. Quis saber qual era a minha cor original”. A passerelle direitinha torna-se uma espécie de tecido amarrotado, depois de um longo mergulho do actor que acaba por se esconder debaixo dele. Escusado será dizer que o terceiro episódio se chama Papel.

O Negócio escurece e o foco incide sobre um rectângulo de papel reciclado que contém areia, bocadinhos de plástico colorido e restos de conchas. Agora as memórias são da praia, da Caparica e do Mar Negro, mais precisamente. Palavras para descrever a “experiência desoladora” que é ir à praia no Inverno e as marcas que as ondas desenham no chão, de cada vez que há maré baixa. Recuperam-se outras peças do actor e bailarino que falam da doença de Alzheimer, como sendo a “dificuldade em aceitar a morte que aí vem, que é uma morte de dentro para fora”.

Um atropelamento junto ao Fórum Almada. É o episódio mais horrível da vida adulta de Rui Catalão, é ele o primeiro a dizê-lo. Há perda, esquecimento e sobretudo um sentimento muito forte de fim. “Esta representação é resultado de uma depressão nervosa, da perda de vontade de viver”, acrescenta o actor.

A peça está entre a realidade e a ficção. Rui quer dar-nos a verdade mas, “no teatro só se aceita uma coisa como verdadeira, por admitirmos que é mentira”. Nunca lhe chegamos a ver o character (ou vemo-lo de mais?) por não poder distinguir onde começa a personalidade e onde acaba a personagem. Rui Catalão defende que a experiência mediada pode ser tão intensa como a real. E é isto que ele dá, a experiência dentro das palavras.



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