Samuel Úria
"Um homem chora. E devia chorar mais, em vez de entregar-se a lamentos sem jeito nenhum". A conversa com Samuel Úria
Samuel Úria apresentou recentemente o seu novo trabalho intitulado “O Grande Medo do Pequeno Mundo”. Um regresso aos álbuns depois de “Nem Lhe Tocava” de 2008, esperado com alguma ansiedade, teve como primeiro avanço o single «Forasteiro» e, mais recentemente, o maravilhoso «Eu Seguro», que conta com a participação de Márcia.
Este álbum é uma caixa de surpresas que, para além das variadíssimas colaborações, apresenta-se mais consistente do que o anterior. Para o ouvinte, há uma espécie de fio condutor entre as músicas, o som é mais calmo e limado. A voz de Samuel é clara e bastante límpida e, aliada à fantástica dicção, permite-nos perceber todas as palavras cantadas, e isso faz a diferença para o ouvinte.
«Armerlim de Jesus», «Espalha Brasas» ou «Em Caso de Fogo» são faixas para ouvir com atenção. Mas há sempre prodígios, e destacam-se «Lenço Enxuto» e «Pequeno Mundo». Hinos de um Mundo de hoje, daquilo que a sociedade é e para onde se encaminha. Samuel Úria alerta-nos para este estado de espírito e, de forma excelsa, canta para o ser humano mais dormente. Sem dúvida que o senhor das patilhas é um trovador que merece mais atenção do que aquela que tem. Dotado de uma sensibilidade ímpar e de talento único, tem realmente a capacidade de nos tocar e de agitar alguns temas.
A Rua de Baixo conversou com o Samuel Úria, para perceber melhor o seu trabalho.
“O Grande Medo do Pequeno Mundo” é um título curioso. Podes desconstrui-lo um pouco?
Não é um título fácil de explicar, na medida em que sei que não resume propriamente as coisas mais consensuais do mundo, ou mais prementes, ou para as quais há mais disponibilidade de entendimento. Quando assumo que é um disco desconfiado com o Humanismo, sinto-me menos um Padre António Vieira a pregar aos peixes, e mais um peixe a pregar às pessoas. E é desconfiado do Humanismo por achar que o Homem, enquanto medida de todas as coisas, não comporta o Homem, enquanto agente de todas as desmesuras. Um mundo de gente assim grande é um mundo pequeno, claustrofóbico, onde o medo se agiganta.
O que sentes que mudou deste para o primeiro registo de 2003 (“O Caminho Ferroviário Estreito”)? Defines o percurso como “estreito” ou que outro adjectivo lhe darias?
É muito estranho ouvir o “Caminho Ferroviário Estreito”, porque desde aí aprendi mil e uma fórmulas e atalhos para fazer canções, mas ainda consigo rever-me nas soluções imediatas que esse disco tinha. Apesar de tudo, o caminho não tem sido assim tão estreito pois tenho-me dado a muitas liberdades: não querer saber da expectativa, não querer saber do estilo, não querer saber a quem me associam, não querer saber do presente musical. Creio que esse caminho largo está ancorado no tal objecto puro, desalinhado e descomplexado como era o “Caminho Ferroviário Estreito”, por saber que ainda lá me revejo, e por saber que posso voltar.
Um álbum repleto de participações: Márcia, Manel Cruz, António Zambujo… Como é trabalhar com estes nomes e de onde veio a ideia de colaboração?
Não há um conceito para os convites. Estas pessoas aparecem no disco porque também me apareceram na vida. Posso ser recatado em muitos aspectos, mas no capítulo de convidar amigos músicos para se juntarem a mim, aí há zero resguardos. Assim como também não há qualquer preconceito editorial ou estratégico, só porque aquele artista tem aquele público, ou aquela identidade, ou aqueles veículos. Gostava de explicar o quanto aprecio a diversidade, mas seria um bocado falso, porque me estou a marimbar para ela, ou para as afirmações que daí se recolhem. Houve demasiada informalidade nos convites para que agora formalizasse uma ideia muito intrincada atrás deles. Mas depois as canções, essas sim, foram feitas ou direccionadas para os convidados, sempre com um propósito muito delineado. No fim, ter esta malta em estúdio é aquele bónus de poderes levar amigos para o emprego, e deveres.
De onde surge a ideia do grafismo da capa do álbum (um toureiro com um cabide na mão)?
Confesso a ingenuidade inicial, por achar que podia desenhar uma cena de toureio sem arrastar as tradicionais polémicas. Era ingenuidade redobrada, pois queria uma imagem forte e ignorava que parte dessa força vinha da polémica, quer da reprovação quer da afeição. Mas, de facto, não há uma manifestação sobre a tourada em si, daí a inclusão de alguns elementos de rápida distracção, como é o caso do cabide – que simboliza muitas coisas aqui, nem sei qual adiantaria primeiro. Basicamente é um retrato do paradoxo, e o próprio disco tenta sê-lo muitas vezes; neste caso a ideia da superação do homem quando enfrenta a besta, sendo que a besta é inferior ao homem e portanto não deveria conferir superação. O Homem a alargar o Mundo cada vez mais para dentro. Outra vez entendo que seja um conceito confuso, por isso é que tenho canções. Elas depois democratizam o entendimento que cada um faz do que eu escrevo.
Com músicas tão sensíveis, achas mesmo o que o “homem não chora por não ser capaz”?
Um homem chora. E devia chorar mais, em vez de entregar-se a lamentos sem jeito nenhum, plenos de secura. Mas a canção, confesso, passa muito pela saudável incompreensão que tenho das mulheres. Como não percebo as maravilhosas ambiguidades do sexo feminino, desambiguo tudo o que existe sobre o sexo masculino, extremo as frases feitas, reduzo o macho aos chavões que o afastam das lágrimas. Há muita dissimulação quando peço olhos emprestados, porque não é uma capacidade mecânica de lacrimejar que eu pretendo, é mais aquela outra visão do mundo que desconheço, que me intriga, e que, suspeito, me completaria.
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