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Samuel Úria

“Nem lhe Tocava”, a ligação com FlorCaveira e Valentim de Carvalho em discurso directo.

“Nem lhe tocava” foi uma das mais curiosas surpresas a fechar o ano de 2009. Da ousadia, irreverência inquietante e promessas existentes sobressai o ímpeto analista e reaccionário que anima, desde a sua existência, o que emerge da fortaleza “FlorCaveriana”. Dos residentes, Samuel Úria é, talvez, quem melhor guarda o refúgio caveriano. Úria, ora desperta nas manhas das análises e considerações comuns – atentem em «Nem lhe tocava» – ora concentra o virtuosismo premente que nos fez acreditar na sacristia rock´n´roll como abrigo que move algum do despertar mais consistente da palavra cantada – ouçam-se e leiam-se, sem preferência pela ordem com que o façam, as «Teimoso», «Não Arrastes o Meu Caixão» e «Ao Tom Dela» – para melhor permeabilizar tais ideias.

No dia de apresentação de “Nem lhe Tocava” no Teatro Ibérico, a RDB conversou com Samuel Úria captando, entre várias vontades e ideias, considerações sobre o novo trabalho, a FlorCaveira, o público, o apoio da Arthouse e Valentim de Carvalho e as referências sónicas que o estimulam de algum modo na sua carreira enquanto letrista e músico.

“Nem lhe Tocava” era disco pensado há já cerca de ano e meio. Úria explica; “originalmente era para ser uma coisa tipicamente FlorCaveira e quando eu digo FlorCaveira, quero dizer mais despojada, gravada com poucos meios, o habitual mini-disc e as 4 pistas. Há músicas em que eu quis manter um pouco isso, neste caso um lo-fi mais falso, mas na tradução desse disco mais despojado para este, apesar de ter tido o acréscimo de meios e uma banda – que era uma coisa que inicialmente não tinha pensado, já que era para ser um disco mais de voz e guitarra – acabei por preservar algumas coisas que o simplificaram. A própria maneira como a banda intervém no disco é uma coisa muito simples e directa. Do género: toquem, acrescentem o que quiserem, mas não toquem em demasia”.

O resultado de gravar com meios escassos para produzir, em efeito sonoro, abundância, e a liberdade dada aos músicos que o acompanharam nesta aventura coincide de certo modo com uma das suas referências – o, também existencialista, Tom Waits – “Waits tem uma grande intervenção no modo como faço as músicas” diz, reforçando depois a ideia: “até por aquele lado um bocado circense de início dos anos 80. Depois há aquela exploração dos instrumentos e de pôr os instrumentistas a tocar mal”.

O arrojo lírico de Úria, o eu destemido no uso e abuso dos simbolismos e recursos estilísticos serão, sem dúvida, o seu virtuoso trunfo. Trunfo esse que nos aviva um pouco do desempenho de Rui Reininho nos GNR.

“A ponte que poderá existir com o Reininho, será não só o facto de assumir como o próprio não ter medo dos jogos de palavras, do exagero, de usar as figuras de estilo em demasia ou de, por vezes, a figura de estilo se sobrepor ao próprio conteúdo ou, noutras situações, o conteúdo ser a própria figura de estilo… acho que isso é uma coisa que os GNR sempre fizeram muito bem”, lembra Úria.

O espelhar de algumas noções e/ou expressões, mais ou menos idiomáticas, são um “ir contra o cliché por assumi-lo”, refere o músico. “Quis fazer algo simples também, com estrofe/refrão, algumas melodias que fiquem no ouvido, outras que as pessoas possam cantarolar e assobiar. Julgo é que pelo facto de ter tido uma coisa mais preenchida fui um pouco contra as expectativas. Mas, no fundo, é um disco mais caramelizado no seu invólucro do que seria se tivesse saído há uns anos tal como estava”.

Durante ano e meio, num ano em que a FlorCaveira teve algum protagonismo ou maior visibilidade nos media, surgiu a oportunidade de Úria gravar pela Valentim de Carvalho – Arthouse, que a ela está de algum modo associada, mais especificamente. O músico resume a travessia: “durante esse ano e meio, em que surgiu a oportunidade de gravar pela Valentim e a Arthouse, foi um ano em que a FlorCaveira teve algum protagonismo também por causa do Tiago e do disco dos Pontos Negros. Houve uma visibilidade maior e eu também comecei a dar concertos nessa altura, o que criou alguma expectativa em relação ao disco que nunca mais saía. Via alguma dessa expectativa até em fóruns, mas sinto que a expectativa que havia estava mais ligada aquilo que eu fazia em concerto, de chegar a uma sala sozinho com uma guitarra e ter uma coisa mais intimista, apesar da atitude ser bastante rock´n´roll nos concertos que faço com voz e guitarra, já que não consigo de outra maneira. Também quis jogar com isso… este disco não estar preso aos guiões das expectativas e aproveitar agora para fazer um disco diferente daquilo que as pessoas estavam à espera. Mantenho aquele lado da voz e guitarra, mas depois é um disco que parte para outros lados e sei que há gente que estava à espera de outra coisa e ficou desiludida, mas isso também me deixa mais à vontade para daqui a um mês já fazer um disco de acordo com as expectativas criadas para este e aí surpreender as pessoas que ficaram desiludidas”.

Dos convidados deste longa-duração contam-se amigos “com quem estou habituado a tocar ou conviver. Fui buscar o b-fachada e Jorge cruz, com presença no tema «o diabo» (enquanto Diabo na Cruz), também a Celina da Piedade (acordeonista que trabalha com Rodrigo Leão)”, mas também o apoio de Nélson Carvalho na produção. “Tive o apoio do Nélson Carvalho na produção, que é um gajo impecável e merece ser reconhecido. Ele ouve as músicas e sabe o que é que vai fazer a seguir. Tem até, por vezes, uma cosmo visão sobre o disco maior do que os próprios autores” lisonjeia, acrescentando ainda que “uma das maiores diferenças que notei entre o trabalho caseiro que vinha fazendo, é de repente ter um disco em que ouço as minhas respirações. A mistura dele foi já uma espécie de pré-produção do disco. A forma como ele colocou os instrumentos foi já sugerir que as coisas assim ficavam bem. O trabalho do Tiago (Guillul) na produção e alguma supervisão já partiu dessa pré-mistura do Nélson”.

Dos convidados fazem ainda parte Jónatas Pires, Filipe Sousa, Tiago Ramos, Luís dos Golpes e Miriam Macaia.

A viagem até à Valentim de Carvalho não desvanece a linha de pensamento sonoro deste FlorCaveriano e “este disco mantém-se editado pela FlorCaveira e mantém muitas das características da FlorCaveira”. Desde a capa feita com canetas de feltro até à música, o abrigo que os viu e fez crescer mantém-se, quase, intacto nas características que o definem.

Se isto fosse fácil eu não o fazia, se fosse difícil eu nem lhe tocava, alerta Úria a jeito de exercício prévio em “Nem lhe tocava”. Confesso que acredito no seu meio termo como tradução das suas eficazes e bem audíveis ambivalências.



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